Em nenhuma hipótese, por qualquer ângulo que se enxergue o episódio, sendo o mais condescendente possível com as habituais gabolices do capitão, não há como aceitar ou mesmo suportar o comentário de um presidente da República quando ele afirma que “pintou um clima” com crianças de 14 anos em encontro recente nas cercanias de Brasília.

Ali nada foi descontextualizado ou colocado propositadamente de forma distorcida em sua boca por eventuais opositores que quisessem confundir a narrativa — aliás, feita por ele mesmo em mais de uma ocasião, em mais de um vídeo, sem cortes ou edições. Estão claros na fala os pendores de um machista fanfarrão, que dá uma parada na sua motoca, tira o capacete e, por delírios de vaidade, acredita estar abafando junto a meninas “arrumadinhas”, vistas, de forma preconceituosa e – depois se ficou sabendo – absolutamente mentirosa, como garotas de programa.

Foi o próprio quem disse: “ Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas, num sábado. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei. Posso entrar na tua casa? Entrei” e lá mesmo concluiu: “meninas bonitinhas, 14, 15 anos, se arrumando num sábado para quê? Ganhar a vida”. As garotas, venezuelanas, estavam, na verdade, se preparando para uma festa na comunidade de imigrantes da qual faziam parte, junto com seus pais e familiares que vieram tentar a sorte no País.

Bolsonaro enxergou a situação à sua maneira, em um comentário que, para os mais desavisados sobre a figura em questão, soaria naturalmente como o de um típico pedófilo. Agora imagine você, pai, se uma filha ou filho seu passasse por circunstância semelhante e depois fosse, publicamente, exposto de forma difamatória como fez o mandatário. Ele não se emenda. No todo ou em partes, a cena descrita e as conclusões dadas de viva voz nos seus relatos denotam o misto de desprezo e preconceito que parece nutrir por aquelas pessoas.

Algo abominável, indecente, a causar asco em muitos brasileiros. A erotização e culpabilidade que Bolsonaro atribui a essas crianças vulneráveis, tentando reforçar uma ideologia tacanha e agradar os seguidores, ferem os mais elementares princípios de civilidade.

O “mito” Messias é cruel, insensível. Indigna com tanto desrespeito ao próximo. Tê-lo no comando do País já configura uma excrescência, mas, na condição de candidato à reeleição, demonstra dar sinais de se superar no que há de pior a cada dia. O rebuceteio de pensamento do capitão coloca a moralidade em outro patamar. Próxima do esgoto. Para “consertar” ou remediar o estrago político que a história lhe causou, ele resolveu escalar a própria mulher, Michelle, e a ex-ministra Damares, dos Direitos Humanos – que protagonizou dias antes mais um ignóbil espetáculo, denunciando falsamente, sem provas, casos de estupros de bebês que teriam os seus dentes arrancados pelos criminosos –, para irem confabular com as garotas que foram alvos das injúrias.

Foi um desastre. As duas, Michelle e Damares, cuja missão era abrandar a revolta que o assunto gerou e colher das venezuelanas testemunhos favoráveis, atuaram, na prática, como verdadeiras agentes de coerção indevida, a mostrar do que é capaz o poder do Planalto. O ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, reagiu ao encontro de maneira implacável: “falta pudor e decência”. As emissárias chegaram ao ponto de procurar gravar depoimentos das meninas para usar em horário eleitoral. Diante da recusa dos responsáveis das menores e da cobrança de explicações pelo ocorrido, combinaram um vídeo de retratação pública de Bolsonaro a essas refugiadas. Deprimente, para dizer o mínimo. Não satisfeito, o Governo ainda enviou funcionários para uma “visita” de averiguação ao local. A campanha do candidato tentou, por sua vez, conter danos, elaborando teasers de propaganda para negar o inegável.

A máquina do Estado, no afã de abafar o caso, entrava em campo. Na contraofensiva, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal encaminhou uma representação à Defensoria da Infância e Adolescência para garantir medidas protetivas às três garotas abordadas pelo capitão. Dada a precarização de suas condições de vida e vulnerabilidade nata que pesa sobre imigrantes, o temor era de que ocorressem intimidações.

E, ali, ficaram caracterizadas. De uma forma ou de outra, a expressão asquerosa, nojenta e ainda não devidamente explicada do presidente – que procurou dar a ela um sentido menor, como mero deslize e hábito de linguagem – continua na mente daqueles que repudiam tanto obscurantismo e que irão às urnas, em poucos dias, para escolher seu representante nos próximos quatro anos na Presidência da República. Pesa no inconsciente, como pesadelo, a frase que, dita como foi, causa ainda calafrios: “pintou um clima”.