‘Não é o fim definitivo’, diz assessora do Instituto Brasil Israel sobre guerra

Especialista indica que assinatura de acordo não é suficiente para acabar com conflito entre Israel e Palestina

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O presidente dos EUA, Donald Trump, ouve o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, enquanto ele discursava perante o parlamento israelense Foto: SAUL LOEB / POOL / AFP

Após dois anos, um dos maiores desastres humanitários do século XXI teve seu fim decretado. No dia 9 de outubro de 2025, autoridades de Israel e da Palestina assinaram um acordo de cessar-fogo definitivo e combinaram a troca dos diversos reféns que ainda sofriam com as consequências da guerra entre as duas nações.

Contando com a presença de mediadores dos Estados Unidos, o chefe do grupo extremista Hamas, Khalil al-Hayya, anunciou a dissolução do conflito e demarcou quais mudanças acompanhariam a Faixa de Gaza nos próximos momentos – incluindo a abertura de fronteiras bloqueadas e entrada de ajuda humanitária.

“Anunciamos que chegamos a um acordo para pôr fim à guerra e à agressão contra nosso povo e iniciar a implementação de um cessar-fogo permanente, a retirada das forças de ocupação e a entrada de ajuda humanitária”, anunciou.

Trata-se de uma das etapas mais significativas em direção à paz desde que a guerra foi deflagrada em 7 de outubro de 2023. Na ocasião, o grupo islâmico palestino Hamas realizou um ataque terrorista contra Israel, deixando cerca de 1,2 mil mortos e outros 251 reféns. Estima-se que 48 desses reféns permaneceram presos durante os anos de conflito, dos quais 20 sobreviveram.

A retaliação de Israel ao ataque significou uma série de ofensivas contra o povo palestino – classificadas por analistas internacionais como as mais violentas desde a Segunda Guerra Mundial. Em dois anos de combate, foram quase 70 mil palestinos mortos (83% deles civis) e mais de 1968 feitos prisioneiros.

Órgãos multilaterais como a Organização da Nações Unidas (ONU) chegaram a definir a ação israelense sobre a Palestina como “genocídio”, institucionalizado no governo do premiê Benjamin Netanyahu. Isso se dá especialmente pelo assassinato sistemático de mulheres e crianças em Gaza, o que interrompe o seguimento geracional.

Apesar da escala sem precedentes do ataque, o atrito entre as duas nações não começou em 7 de outubro de 2023. A disputa remonta questões territoriais, religiosas, étnicas e históricas, de modo que tornou-se uma problemática delicada ao longo dos anos.

A ofensiva do Hamas ocorreu em um contexto de décadas de ocupação militar israelense, bloqueio à Faixa de Gaza, expansão de assentamentos na Cisjordânia e repetidas violações de direitos humanos de palestinos.

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Desde 2007, Israel e Egito mantêm um bloqueio à Faixa de Gaza, limitando severamente a entrada e saída de pessoas, bens e ajuda humanitária. A própria ONU e diversas ONGs consideram esse bloqueio como uma forma de “punição coletiva”.

O conflito, porém, envolve mais do que apenas as nações israelenses e palestinas: o “fator EUA” ainda é muito presente na guerra árabe-israelense, sendo os norte-americanos reconhecidos como principais patrocinadores do Estado de Israel e apoiadores do movimento sionista no plano geopolítico internacional.

O governo de Donald Trump aprofundou essa aliança histórica por meio de medidas simbólicas e estratégicas, além de fortalecer o apoio militar e bélico a Israel. O republicano também cortou financiamentos a instituições palestinas e retirou os EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU, acusando o órgão de parcialidade contra Israel.

Desde que voltou à cadeira de presidente, Trump tenta colocar-se como a autoridade capaz de acabar com conflitos mundiais, com destaque para a Guerra na Ucrânia e na Faixa de Gaza – dois combates que dependem da ajuda financeira estadunidense.

Utilizando a resolução do conflito como promoção pessoal, Trump foi um dos responsáveis por articular os detalhes do acordo oficializado na última semana e se apresentou como um agente da paz. Nesta segunda-feira, após discursar no parlamento israelense, foi a vez do americano assinar o documento de trégua, junto com mais 20 representantes mundiais.

Em entrevista à IstoÉ, a professora de Relações Internacionais e Direito do Ibmec e assessora acadêmica do Instituto Brasil Israel Karina Calandrin discorreu sobre os detalhes que envolvem o suposto fim do conflito e a participação mundial no guerra árabe-iraelense.

Confira a entrevista completa:

A guerra entre Israel e Palestina remonta a um conflito de décadas, acoplado em disputas religiosas, políticas e territoriais que se tornaram mais complexas com o passar dos anos. Considerando isso, é possível decretar o fim definitivo do confronto após a assinatura de um documento e devolução de reféns?

Calandrin: Não. A troca de reféns e o texto do acordo encerram esta guerra específica, mas não resolvem questões estruturais (governança de Gaza, desarmamento de grupos, status final, segurança, reconstrução, Estado palestino). Até a imprensa que cobriu a assinatura ressalta que os “nós” duros ficam para depois, logo, não é um “fim definitivo”.

A segunda fase do acordo de paz prevê o desarmamento do Hamas e a criação de um conselho civil em Gaza, considerada por autoridades internacionais como uma etapa delicada. É possível que haja algum empecilho ou resistência para a concretização desta segunda parte do acordo?

Calandrin: Sim, em primeiro lugar, não está claro quem terá autoridade e legitimidade para impor e verificar o desarmamento, o que abre espaço para contestação e manobras por parte do próprio Hamas e de facções rivais ou clãs locais, resistentes a ceder poder. Além disso, existe o risco de um vácuo de segurança caso o desarmamento avance sem que haja uma força substituta eficaz para manter a ordem, o que poderia favorecer o surgimento de novos grupos armados ou desestabilizar ainda mais a região. A disputa sobre quem governará Gaza também é um ponto sensível: há quem defenda uma Autoridade Palestina tecnocrática, outros sugerem um arranjo envolvendo países árabes vizinhos, e ainda há desconfiança por parte de setores israelenses quanto a qualquer solução que não lhes garanta controle de segurança. Por fim, a política interna de Israel desempenha papel crucial, já que pressões da coalizão governista e da opinião pública podem dificultar concessões, tornando essa etapa particularmente delicada e sujeita a resistências de múltiplos lados.

Qual o nível de participação real do presidente Donald Trump no que diz respeito ao acordo de paz assinado pelas duas partes?

Calandrin: Ele atuou como fiador político do pacote: anunciou etapas, foi à região, discursou na Knesset e assinou o documento com mediadores (Egito, Turquia, Catar). Mas a implementação depende de Israel, Hamas e dos mediadores regionais; os EUA não “impõe” no terreno.

O que o grau de violência deste conflito representa para as organizações multilaterais, que se viram incapazes de conter a guerra e o desastre humanitário?

Calandrin: Esse episódio revela, de forma contundente, a fragilidade estrutural das organizações multilaterais diante de conflitos de alta intensidade. Apesar da aprovação da Resolução 2735 pelo Conselho de Segurança da ONU, que delineava um roteiro em três fases para encerrar as hostilidades, a instituição não dispunha de instrumentos coercitivos para garantir sua execução, dependendo em última instância da vontade política das partes e de mediações regionais. No plano humanitário, a ONU reiteradamente alertou para sua incapacidade de ampliar o acesso a Gaza no ritmo e na escala necessários, ficando sujeita a restrições de segurança, à autorização de Israel e às condições impostas por atores locais. Assim, embora o multilateralismo permaneça central para dar legitimidade e coordenar esforços de paz e assistência, ele continua limitado pela ausência de mandato robusto, de meios operacionais próprios e de financiamento estável, o que compromete sua capacidade de prevenir ou mitigar tragédias dessa magnitude.