Com semblantes cansados e os filhos nos braços, dezenas de mulheres se reuniram na quinta-feira 27 no centro do Recife, em Pernambuco, para denunciar a morte de três bebês com microcefalia relacionada à síndrome congênita do vírus da Zika. As crianças morreram no intervalo de um mês por falta de assistência respiratória adequada na rede pública do estado. Esse é o lado mais trágico de uma crise de saúde que se iniciou há dois anos, quando pesquisadores começaram a associar o vírus à má formação congênita, e está longe de terminar para milhares de mães que convivem diariamente com as consequências da epidemia. A ONG Human Rights Watch revelou em relatório recente que as condições precárias que deram origem ao surto e possibilitaram a proliferação do mosquito Aedes aegypti continuam as mesmas. “Os governos investiram na saúde de uma forma emergencial, mas ainda existem problemas de saneamento básico e famílias têm dificuldade para acessar serviços de saúde”, afirma João Bieber, um dos autores da pesquisa. “Além das longas filas de espera, os centros de fisioterapia estão concentrados nas grandes cidades, o que obriga as mães a gastarem horas no transporte público para conseguir o tratamento.”
Apesar de o governo federal ter declarado em maio o fim do estado de emergência nacional, os riscos para que outros surtos venham à tona e os obstáculos enfrentados pelas mães são evidentes. Maria Carolina Silva Flor tem 22 anos e até ficar grávida cursava técnico em enfermagem. Desde janeiro do ano passado, seus dias são de dedicação exclusiva à filha portadora de microcefalia, Maria Gabriela. Ambas vivem em um sítio no município de Esperança, na Paraíba, e duas vezes por semana se deslocam até Campina Grande para sessões de fisioterapia. Depois de muitos meses de insistência, ela conseguiu apoio da prefeitura para garantir a regularidade do transporte. “Tive que entrar na Justiça para conseguir. Os ônibus estavam sempre atrasados, o que nos fazia perder o tratamento”, diz. Outros gargalos estão no acesso à informação e aos profissionais de saúde. “A falta de médicos é um sofrimento constante. Elas têm de esperar por consultas e por exames considerados urgentes”, afirma Kássia Oliveira, fisioterapeuta do Centro de Reabilitação e Valorização da Criança (Cervac) que atende bebês com microcefalia em parceria com a ONG Visão Mundial. “Nos postos da rede pública, os bebês recebem alta com um ano e meio, embora o acompanhamento deva ser contínuo nos três primeiros anos”, diz Kássia.

Desigualdade de gênero

SANEAMENTO Esgoto e lixo são despejados diariamente em uma comunidade no bairro de Coelhos, em Recife, Pernambuco (Crédito:Divulgação)

No saneamento básico a situação também continua precária. “No auge da epidemia, enquanto vários bairros sofriam com esgotos e canais a céu aberto, o foco foi o controle doméstico”, afirma Bieber. “Tem um córrego perto de casa e quando chove transborda lixo em toda a rua. Ninguém passa por ali”, diz Maria da Conceição da Silva, de 42 anos, mãe de Ágata Batista Ferreira, de um ano e nove meses, também com microcefalia. O governo de Pernambuco afirmou ter repassado R$ 5 milhões às prefeituras em 2016 para reforçar ações de controle e capacitado quase 4 mil pessoas para combater o mosquito transmissor. “Foi uma resposta imediata, mas ainda falta prevenção e conscientização”, diz Eugênio Rodrigues Guimarães Filho, assessor nacional de emergências da Visão Mundial.

“Os governos investiram de forma emergencial, mas ainda persistem problemas de saneamento básico e atendimento médico” João Bieber, Human Rights Watch

A conclusão do estudo é que se um novo surto eclodir, o mosquito encontrará as mesmas condições propícias para se proliferar. E o ônus, mais uma vez, recairá sobre meninas e mulheres. A epidemia, ainda segundo o relatório, reforçou a desigualdade de gênero, uma vez que não foram realizadas campanhas para estimular a participação de homens e meninos no debate. “É uma questão ignorada”, afirma Bieber. Para reverter esse cenário, especialistas acreditam que, além de investimentos na ampliação da rede de saneamento básico, devem ser criadas medidas para reduzir a gravidez não planejada, incluindo opções de métodos contraceptivos de longo prazo e melhora na distribuição de medicamentos e, por fim, oferecer às famílias programas de saúde de curta e longa duração.

O RETRATO DA EPIDEMIA

2,6 mil crianças nasceram com microcefalia e outras complicações causadas pelo Zika vírus no Brasil e precisam de apoio a longo prazo

48%
das mulheres e meninas que deram à luz a bebês com microcefalia são solteiras

25%
das mulheres e meninas que tiveram bebês com entre novembro de 2015 e setembro de 2016 tinham menos de 20 anos

108%
foi o aumento do aborto registrado no Brasil pela Women on Web, organização sem fins lucrativos que fornece medicação para interrupção da gravidez em países onde os serviços são altamente restritos, desde o início da epidemia

760
adolescentes entre 10 e 19 anos tiveram bebês com microcefalia nesse período; 35 meninas tinham entre 10 e 14 anos