Não apontem o dedo para Marco Aurélio

Entre tantas batalhas ferozes que acontecem no Brasil de hoje em dia, inclui-se aquela que opõe os defensores do velho e bom garantismo penal e os que desejam reformar o direito criminal brasileiro, incorporando a ele ferramentas que julgam ser mais eficazes no combate à corrupção e ao crime organizado, e que muitas vezes vêm de outras tradições jurídicas, como a americana.

A batalha veio à luz mais uma vez neste fim de semana, quando o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, deu liberdade ao traficante André do Rap, que estava na cadeia desde o fim do ano passado, mas sem condenação definitiva. Assim que foi posto na rua, o chefão do PCC sumiu – como talvez fosse de se esperar.

A decisão de Marco Aurélio causou muita indignação. Mas não se pode acusar o ministro de incoerência.

Nos últimos meses, ele beneficiou outros 79 réus com decisões do mesmo tipo. E o padrão, na verdade, vem de mais longe.

Vinte anos atrás, o ministro fez algo muito parecido no caso do banqueiro Salvatore Cacciola.

Cacciola era acusado de desvio de dinheiro público e gestão fraudulenta, e conseguiu suspender uma ordem de prisão preventiva por meio de um habeas corpus julgado por Marco Aurélio. Assim que deixou a cadeia, fugiu para a Itália – o que também provocou uma enorme polêmica.

Para o ministro, o mesmo princípio está em jogo em todos os casos: enquanto não existir condenação definitiva, deve-se limitar ao máximo o uso da prisão preventiva.

Em 2007, quando Cacciola foi recapturado na Europa e extraditado ao Brasil, o ministro deu uma entrevista reveladora sobre o caso. Ele disse que o risco abstrato de um réu se escafeder não basta para mantê-lo na cadeia antes da condenação final. A acusação precisa trazer dados concretos ao processo para justificar o prolongamento de uma prisão preventiva.

Marco Aurélio defendeu até mesmo o direito do acusado de fugir: “Enquanto a culpa não está formada, mediante uma sentença da qual não caiba mais recurso, o acusado tem o direito de fugir, que eu aponto como natural”.

No caso de André do Rap, o ministro não acha que fosse necessário nem mesmo discutir as justificativas para a prisão preventiva. Afinal, uma regra do Código de Processo Penal aprovada recentemente obriga a Justiça a justificar a prorrogação da preventiva a cada 90 dias. Se essa formalidade não for cumprida, nem vem ao caso discutir se o réu é bonzinho ou malvado.

Numa entrevista na manhã de hoje à Rádio Gaúcha, o ministro disse exatamente isso. “Não estava em jogo a periculosidade do paciente”, afirmou. “Acionei o Código de Processo Penal, parágrafo único do 316. Foi incluído no pacote anticrime pelo Congresso Nacional. É categórico.” Ou seja: como não veio a justificativa para manter André do Rap atrás das grades, a única alternativa era soltá-lo.

Decisões e declarações como essa fazem de Marco Aurélio a própria encarnação do garantismo penal.

Para ele, a prioridade é proteger o indivíduo de ações arbitrárias do Estado. Nenhuma punição pode ser admitida que não seja decorrente de um processo que chegou até o final seguindo todas as regras. É uma teoria clássica do Direito Penal, que remonta ao século 18 e antecede inclusive o discurso sobre direitos humanos.

Obviamente é possível criticar essa posição. Pode-se dizer, por exemplo, que ela fecha os olhos para as circunstâncias concretas em que a lei é aplicada e para as consequências que uma decisão pode ter. Foi o que fez, por exemplo, o governador de São Paulo, João Doria, dizendo que se esses fatores fossem observados, um bandido notoriamente envolvido com o tráfico internacional de drogas não estaria de volta às ruas e os custos de uma nova perseguição seriam poupados.

É uma crítica válida. Ainda assim, não acho que Marco Aurélio deva ser transformado no Judas de malhação dessa história. Ele decidiu conforme a lei, seguindo convicções de longa data e uma escola clássica de interpretação do Direito Penal. Não há dúvida sobre aquilo que ele pensa e representa. A confusão vem de outros lugares.

O Congresso e Jair Bolsonaro, em primeiro lugar, são culpados de hipocrisia. Usaram um pacote de legislação “anticrime” para aprovar dispositivos que caminham claramente na direção contrária – como é o caso, sem dúvida alguma, do dispositivo inserido no artigo 316 do Código de Processo Penal, que levou André do Rap à liberdade.

Bolsonaro foi especialmente hipócrita. Seu governo patrocinou o pacote. Cabia a ele, portanto, vetar alterações realizadas pelo Congresso que contrariassem o espírito do projeto, mesmo que os vetos fossem depois derrubados. No entanto, em vez de defender ideias que foram parte importante de sua campanha eleitoral, o presidente escolheu se omitir.

Fez isso para isolar Sergio Moro, que ainda era seu ministro, mas que ele começava a encarar como uma ameaça política, e para agradar políticos do Centrão, com quem andava flertando. Muitos desses políticos estão envolvidos em processos de corrupção e não desejam ver aprovadas tão cedo medidas de endurecimento da legislação penal.

Acredito que uma parte da responsabilidade também deve ser cobrada do Supremo. A corte oscilou loucamente nos últimos quinze anos ao tratar de questões penais. Começou a endurecer suas posições no julgamento do mensalão, e ratificou muitas ações da Lava Jato que podem ser vistas como inovações jurídicas. Nos últimos tempos, contudo, esse ímpeto refluiu entre alguns ministros. E a corte também se mostra dividida entre garantistas e “inovadores”, o que faz dela mais uma fonte de incerteza em questões penais do que o contrário.

Nessa situação, creio que o melhor que poderia acontecer é o encaminhamento dos casos criminais ao plenário do STF. Exatamente como o ministro Luiz Fux, que recém-assumiu a presidência da corte, parece determinado a fazer.

Fux marcou para amanhã a revisão coletiva da decisão de Marco Aurélio sobre André Rap. Marco Aurélio não gostou. Não tenho dúvida que ele vai ser duro em seu voto. Mas nesse caso, creio que está errado.

O STF ganha em legitimidade, e o direito em coerência, quando grandes controvérsias são resolvidas no plenário. Como a legislação penal se transformou em um fator divisivo no Brasil, também o país deve sair ganhando se o Supremo assumir a responsabilidade de pacificar, tanto quanto possível, essas querelas.