A amplificação dos discursos de ódio pelas redes sociais e o fortalecimento de ideologias de extrema direita tem trazido um aumento da perseguição aos judeus no Brasil e no mundo. Símbolos nazistas proliferam, assim como apologias de Adolf Hitler. Essa tendência nefasta é verificada pelo médico oftalmologista Claudio Lottenberg, 61 anos, presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib). Ele vê com extrema preocupação o crescimento das manifestações de antissemitismo e de desrespeito a símbolos hoje no País. “Existem três bandeiras fundamentais para nós, judeus do Brasil. Em primeiro lugar, não queremos ver o tema do Holocausto sendo banalizado”, disse Lottenberg em entrevista à ISTOÉ. “Além disso, vamos lutar contra todo e qualquer movimento de antissemitismo que possa existir e não vamos permitir a deslegitimação do Estado de Israel.” Nos dias 23 e 24 deste mês, a Conib realiza sua 52ª Convenção, que será online e aberta para todos os públicos, não apenas para a liderança da comunidade. A ideia é justamente unir os judeus em torno desses princípios técnicos, respeitando o individualismo e a pluralidade das opções de cada um deles e discutindo a proliferação de discursos extremistas e notícias falsas.

Como o senhor vê esse fortalecimento das ideologias de extrema direita hoje no mundo?
Com muita preocupação, a história é vasta em exemplos de que esse é um caminho muito perigoso, porque traduz um sentimento de intolerância e subtrai o direito à diversidade. Em um mundo que luta tanto pela inclusão, trata-se de um retrocesso porque nos remete a um passado vergonhoso. Por outro lado, acho que o fenômeno é fruto de uma percepção de que a globalização não foi uma resposta eficiente para resolver as desigualdades sociais. A falha das políticas globalizantes, associadas ao surgimento de governos ultranacionalistas, ajuda a explicar o que a gente está observando hoje no mundo.

Outros fatores contribuem para esse retrocesso?
Quando você começa a observar esse tipo de comportamento extremista numa sociedade percebe-se que, em geral, ele é capitaneado por figuras populistas. Alguns são verdadeiros pregadores. E essa mecânica de pregação ganha espaço entre pessoas que se sentem injustiçadas, o que constrói um cenário positivo para que ideias de extrema direita se propaguem. Se acontece em uma sociedade, a tendência é que se repita em outras. Até porque as mecânicas atuais de comunicação são muito mais eficientes do que foram no passado. Acho que é um fenômeno internacional, que deverá em algum momento ser freado, ou por uma percepção dos cidadãos que começarem a ver que é um caminho ruim, ou por causa do malogro dessas políticas ultranacionalistas. Mas até isso acontecer há uma série de efeitos, inclusive a violência.

Embora seja um fenômeno internacional, no Brasil isso está bem nítido com Bolsonaro. Ele estimula pensamentos radicais como o nazismo o fascismo?
Não pretendo analisar a linha de ação do governo e nem falar de a, b ou c. Percebo essas manifestações de extrema direita em toda a sociedade e em muitos políticos. Pela Conib temos trabalhado no combate ao discurso de ódio de uma forma educativa, preventiva e tentamos fazer alguma coisa de natureza repressiva. Há uma série de pesquisas acadêmicas que tentam esclarecer a origem desses discursos, identificando núcleos e células nazistas. Estamos tentando criar mecanismos para confrontar essas manifestações nocivas. Não acredito que seja algo organizado pelo governo, mas acho que pessoas próximas ao governo que apóiam linhas políticas mais radicais acabam patrocinando esse tipo de comportamento.

O governo Bolsonaro dá sinais de antissemitismo?
Embora tenha características de extrema direita, o governo tem feito movimentos muito positivos em relação ao Estado de Israel, por exemplo. Mas sinto que vários grupos que dão suporte ao presidente são afeitos a promover ideias antissemitas.

A propagação de fake news faz parte de roteiro de ação da extrema direita?
A rigor, as mídias sociais deveriam prestar um excelente serviço, de maneira imediata, plural e simultânea, mas infelizmente o que a gente tem assistido é um incremento da propagação de notícias falsas. Vemos o que aconteceu com a cloroquina no Brasil e fora também. Há também o movimento antivacina. Grupos radicais levam a população ao erro e estão articulados ao surgimento de haters, que são pessoas que se sentem à vontade para agredir da maneira que bem entendem.

O negacionismo é uma ameaça?
O fato é que nós temos presidentes e líderes no mundo muito populistas. Donald Trump é um exemplo claro disso. Lembre-se que em dado momento ele teve esse tipo de postura refratária a aceitar aquilo que estava acontecendo. Veja o que aconteceu nos Estados Unidos, o país que mais gasta em saúde e foi um dos primeiros a ter acesso à vacina. Testes, vacinas, aparelhos, tudo eles tiveram antes. Nós tivemos pedidos de respiradores que foram cancelados por causa da preferência pelos Estados Unidos. E veja o número de mortos que eles tiveram lá. O fato é que essa postura que contraria a ciênciaou é pseudocientífica leva ao retrocesso.

Voltando ao recrudescimento dos movimentos de extrema direita. O que a Conib consegue fazer de concreto contra isso?
A Conib é uma organização que existe há mais de 70 anos e representa a comunidade judaica brasileira. Embora seja apartidária, é uma organização de natureza política e democrática, que defende a diversidade, como aliás é característica da comunidade judaica. Ela luta por princípios como a paz, a democracia, combate a intolerância, trabalha em questões de terrorismo e promove a justiça social. Existem judeus de esquerda, de direita, liberais, mais conservadores, a comunidade é plural, então ela se faz representar em todas as linhas políticas brasileiras. Existem três principais bandeiras que são fundamentais para nós, judeus do Brasil, enquanto comunidade. Em primeiro lugar, não queremos ver o tema do Holocausto banalizado porque nada se compara ao Holocausto. Nós vamos lutar contra todo e qualquer movimento de anti-semitismo que possa existir e não vamos permitir a deslegitimação do Estado de Israel. Esses três temas são os mais caros para a comunidade.

As ameaças a esses princípios aumentaram?
Acho que sim. Cansamos de ver nos últimos meses comparações entre o que está acontecendo no nosso País com o Holocausto. Por pior que seja a pandemia, por mais que possamos discordar das decisões das lideranças políticas, nada se compara ao que foi o Holocausto. Foi uma política deliberada, focada, na perseguição e na eliminação de um grupo humano, os judeus. Tivemos outras situações de genocídio, mas essa é muito marcante para nós. Nada se compara. E há uma tentativa de banalização. Em relação às questões de anti-semitismo também temos assistido a uma sucessão de casos. O anti-semitismo tem uma forma de manifestação conforme o tempo. Na época da Inquisição, era religioso. Na Segunda Guerra, passa a ser racial, com o sentimento da eugenia. E recentemente ganhou conotações de natureza antissionista, que é o combate ao Estado de Israel, algo que o Brasil, felizmente, não está mais fazendo.

Quais foram os grandes erros cometidos para que o Brasil superasse 610 mil mortes?
O primeiro grande erro foi a falta de capacidade de liderança para que a gente tivesse um entendimento único a respeito da importância do momento e daquilo que precisava ser feito. Essa liderança deveria ser conjunta, a ponto de unir os diferentes atores da sociedade brasileira, algo que jamais aconteceu. Acho que a sociedade está pagando um preço caro por culpa e responsabilidade das autoridades políticas eleitas. Poderia particularizar em um ou outro ator, mas prefiro não especificar. O fato é que a boa ciência foi deixada de lado.

Quantas mortes poderiam ter sido evitadas?
Se tudo fosse feito dentro de um sistema de aquisição mais ágil, rápido, com menos sinais de corrupção, tanto em equipamentos hospitalares, como, depois, com as vacinas, a população teria ganhado um ou dois meses. Alguns estudos indicam, com segurança, que poderiam ter morrido de 120 mi a 150 mil pessoas a menos. Além do atraso na vacina, não tínhamos estrutura hospitalar. Faltavam leitos suficientes de alta complexidade, respiradores e chegou a faltar oxigênio. Houve um festival de movimentos descoordenados, sem lógica científica, que acabaram levando a uma situação caótica.

Como o senhor vê o desempenho do SUS e da rede privada durante a pandemia?
Acho que se não tivéssemos o SUS no Brasil, o quadro seria muito pior. Quando a gente olha os números que nós temos realmente são números cavalares. Eles assustam e muito. Mas se não tivéssemos um sistema de saúde como nós temos, de natureza universal, talvez a coisa tivesse sido pior. Naquilo que envolve os pacientes que não necessitaram de unidade de terapia intensiva, o desempenho foi bom. O problema foi justamente quando se precisou de suporte para pacientes graves. Em várias regiões do País, como São Paulo, que tem uma estrutura hospitalar voltada para a alta complexidade, as taxas de performance foram boas. Acho que o sistema público de saúde brasileiro foi colocado em teste e deu sinais positivos, mas também revelou fragilidades que nós sabíamos que já existiam. A gente precisa levar em consideração que se dependêssemos apenas do SUS, não teríamos condições de levar saúde para todos os brasileiros. Cerca de 25% das população depende do sistema de saúde suplementar, que também funcionou bem de um modo geral.

E o caso Prevent Senior?
Não conheço com detalhes, mas acho que questões bastante importantes estão sendo levantadas, inclusive algumas de natureza ética, e eles vão ter, logicamente, que explicar o que aconteceu. Mas se nós extrapolarmos, podemos tirar uma lição desse caso. A mecânica regulatória dos planos de saúde no País trata muito de preços. A Agência Nacional de Saúde (ANS), que regula esses planos, lida com questões de mercado, mas não pressiona as empresas a trabalharem com indicadores de desfecho e qualidade. Essa é uma lacuna regulatória muito séria que pode levar a experiências desastrosas. Acho que a crise da Prevent expõe um setor importante a questionamentos.