Precisão neste caso não é simples, mas me arrisco: entendi a vocação que temos para o deboche absoluto com nossa própria existência em 19 de julho de 1992. Naquele dia, como uma das 120 mil pessoas que estavam no Maracanã para assistir a final do campeonato brasileiro entre Flamengo e Botafogo, testemunhei a morte de três jovens, após o desmoronamento da grade de proteção da arquibancada.

Desde então, foram inúmeras as situações em que vidas se perderam em meio ao acaso. Houve quedas de prédios e viadutos, rompimento de barragens, incêndios e alagamentos. Houve inclusive assassinatos em nome de uma pseudorrevolta juvenil, como no caso do cinegrafista Santiago Andrade, da TV Bandeirantes. Noves fora uma ou outra peculiaridade, para todos esses episódios cabe o lamento público feito nos últimos dias pela procuradora-geral da República Raquel Dodge: “eram tragédias evitáveis”.

Se há uma semana o Brasil arregalou os olhos em cima da Vale por causa de um desastre humanitário e natural inclassificável sob todos os aspectos, hoje espera-se do Flamengo respostas para a estúpida morte de dez jovens queimados. Sem falar, é claro, no incêndio da Boate Kiss há 6 anos, em Santa Maria, cujo processo está encalhado na Justiça.

Para além das responsabilidades, contudo, fica o amargor pela constatação de que, no fundo, pouco importa o setor da sociedade, o tamanho da instituição ou a capacidade financeira da empresa. Existe em nós uma predileção irresistível pelo trabalho porco. Melhor dizendo, pela gambiarra, como bem salientou um dos jovens rubro-negros sobreviventes.

Falo aqui de uma espécie de preguiça macabra. Um desdém para com os riscos aos quais nós mesmos acabamos expostos na fé de que o pior não há de acontecer e de que os responsáveis raramente serão cobrados como determina a lei, caso a realidade cobre o preço por tamanho atrevimento. Se há uma unanimidade de opinião hoje é a de que este começo de ano pinta amargo como há muito não se via. Sensação esta reforçada pelo acidente que privou a sociedade de um jornalista único como era o Ricardo Boechat.

Pois, para mim, isso não passa de mero truque inconsciente. Nos forçamos a acreditar no caráter fortuito dessa amargura para atenuar a realidade. Como se o cenário atual fosse passageiro, uma vez que raro. Não é e não faz sentido que seja. Não enquanto a política de colar com cuspe permanecer sendo a nossa essência como cidadãos.

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Existe em nós uma predileção irresistível pelo trabalho porco, pela gambiarra, como salientou um dos jovens atletas rubro-negros sobreviventes do incêndio no CT


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