Havia urgência no longa anterior de Fellipe Barbosa. Casa Grande filia-se a uma tendência do cinema brasileiro que inclui O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, e Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert. Um garoto em plena erupção dos hormônios e numa casa – numa família – que está implodindo, até mesmo economicamente. Barbosa gosta de acreditar que Gabriel e a Montanha, seu novo longa, começa onde o outro termina. O que ocorreu com aquele garoto que talvez ainda não saiba o que quer da vida, mas com certeza sabe o que não quer, e é aquela vida protegida no casulo da casa grande? O garoto foi para a África.

Gabriel foi premiado em Cannes, em maio, na mostra Semana da Crítica. Teve ótimas críticas na França – torrentes de elogios nos jornais Libération e Le Monde, quatro páginas (quatro!) na prestigiada revista Cahiers du Cinéma, incluindo duas de entrevista com o diretor. E na quarta, 1º, recebeu o prêmio da crítica como melhor filme brasileiro da Mostra. E isso sem contar os demais festivais de que participou – Jerusalém, Munique, Odessa, Sarajevo, etc. E, claro, o Festival do Rio e a já citada Mostra de São Paulo.

O Rio teve um sabor especial. Fellipe Barbosa sempre soube que havia um componente muito grande de risco em Gabriel e a Montanha. O filme inspira-se numa história real, e de alguém próximo a ele. Seu amigo – brodaço! – Gabriel Buchmann. Barbosa fez o filme cheio de entusiasmo e esperança, características do próprio Gabriel, mas também, admite, com temor. E se não funcionasse? Estaria traindo o amigo? Seria sua segunda morte? A sessão do filme no Festival do Rio foi catártica. A mãe de Gabriel já havia visto o filme em Cannes. No Rio, foram todos os amigos. Reencontraram Gabriel na tela, na interpretação de João Pedro Zappa. “Choravam abraçados comigo. Foi muito emocionante”, diz o diretor.

Fellipe viajou muito. Estudou nos EUA, foi dar um curso de cinema – roteiro – na África. “Amei Uganda, queria ficar. Quando Gabriel foi para a África para estudar a pobreza, que seria o tema de seu doutorado em políticas públicas, os amigos acharam loucura, mas eu entendi aquilo. Estávamos um tanto afastados, cada um vivendo sua vida, quando recebi um e-mail de Uganda. Percebi nele o mesmo desejo de ficar que tive. Quando desapareceu, surgiu o rumor de que teria sido assassinado, mas eu achava que não. Apesar das violências tribais, é um povo muito hospitaleiro. Gabriel morreu de hipotermia quando tentava escalar o monte Mulanje, no Malauí. Quando resolvi fazer o filme, voltei duas vezes para pesquisar, em 2011 e 15. Fui a quatro países, comecei a procurar os lugares, as pessoas que cruzaram seu caminho. Algumas histórias foram incríveis. O guia do Gabriel tinha virado mendigo em Zanzibar. E o encontrei por acaso.”

O que Fellipe apreendeu dessa história, e da sua obsessão para fazer o filme – que consumiu muito tempo -, é que, por mais que exista essa coisa, seja fatalidade ou destino, isso não elimina nossas escolhas. “A subida da montanha é algo mítico. Dizem que o (JJR) Tolkien teve a inspiração para O Senhor dos Anéis no Mulanji. A montanha tem essa coisa do desafio, da superação. Tive de fazer montanhismo para me preparar, porque, afinal, ia fazer uma equipe subir a montanha comigo. Na França, a crítica viu muito a questão da morte. A passagem. Claro que faz sentido. Toda a vida da gente é uma caminhada para a morte. Mas não queria, pelo Gabriel, que o filme fosse visto só assim. Acho que tem muita vida nele, na forma como o Zappa cria o papel.”

E Barbosa confessa suas surpresas. “Achava que nesse mundo tão materialista, tão cínico, o Gabriel idealista da primeira parte ia seduzir as pessoas como personagem. Quando chega a Chris, a namorada, explodem as contradições, e agora eu sei que é a partir daí que as pessoas se envolvem mais.” A outra coisa é que o diretor, que utilizou apenas dois atores, Zappa e Carolina Abras -, o restante do elenco é de não profissionais, recrutados nos países em que filmou, sempre pensou em mostrar o filme para eles, em seu habitat. “Vai ser coisa para 2018, este ano está muito corrido. O único que já viu foi Leonard Siampala, que faz o massai e foi com a gente para Cannes.”

Foi a coisa mais linda do mundo. “Havia uma paranoia de segurança no palais. Todo mundo era revistado, sessões foram interrompidas e chegou aquele negro imenso, com seu facão de massai e ele passava majestoso pela seguranças, sem que ninguém o parasse. Da sua comunidade, ele foi o único que saiu para o mundo. E o mundo, para ele, é o tapete vermelho de Cannes. O Gabriel ia adorar isso.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.