Mal se livrou do processo das rachadinhas, o 01 já se enfiou em outro imbróglio. Em dezembro, Flávio Bolsonaro teve seu nome associado à compra suspeita de 500 fuzis adquiridos pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Há “evidente direcionamento”, concluiu Lucas Rocha Furtado, subprocurador do Ministério Público que atua no TCU. A compra foi efetivada no fim de 2021, quando o senador conseguiu a liberação de R$ 3 milhões do Ministério da Justiça junto à Secretaria Nacional de Segurança, parte de um total de R$ 3,8 milhões, o valor da oferta da empresa bélica Sig Sauer. Ela venceu o pregão em julho passado com um montante 2% abaixo do teto estipulado.

Para Rocha Furtado, houve “atuação direta do senador armamentista Flavio Bolsonaro” na liberação de dinheiro do governo federal, como afirma no pedido de investigação à presidente do TCU, Ana Arraes, segundo informações publicadas pelo UOL. A investigação deve ser iniciada com a licitação, diz o subprocurador, e abranger a liberação do montante, com anulação da compra se os indícios de irregularidades forem confirmados.

O papel do filho do presidente nessa aquisição deve estar no foco das apurações. Para a cientista política Juliana Fratini, é legítimo que empresas tenham departamentos de relações governamentais que atuem em favor de seus interesses, “mas o lobby no Brasil não é regulamentado”. Ela estranha que haja “parlamentares fazendo a defesa escancarada de uma ou outra, quando jamais deveriam contribuir direta ou indiretamente para que uma empresa vença processos licitatórios”. A Taurus brasileira e as turcas Kalekalip e MKEK questionaram o edital de licitação por causa de cláusulas que limitariam a concorrência, mas a Polícia nega irregularidades. Pelo Termo de Referência assinado por três policiais, uma das especificações é quanto aos canos dos fuzis: precisariam ter 14,5 polegadas (“por razões operacionais”), quando o mais comum é o modelo com 16.

Um dos signatários é Manoel Hermida Lage, que é conhecido por atuar em campos de tiro da empresa. A Polícia diz que ele não tem vínculo empregatício com a fabricante e que sua conhecida atuação nessas atividades caracteriza “docência” autorizada fora do trabalho policial. Para o Ministério da Justiça, a transferência de recursos se deu dentro das normas. A Sig Sauer (de origem suíça, mas com sede nos EUA), que tem Marcelo Costa como representante no Brasil, não se pronunciou. Flávio Bolsonaro, por sua vez, declarou que “ninguém fala em seu nome” e divulgou que não sabia da suspeição dos procedimentos, mostrando-se “interessado na apuração do caso”.

A Sig Sauer já tinha outro filho do presidente, Eduardo, fazendo lobby por ela desde 2019. Em dezembro de 2020, o 03 divulgou uma foto no Clube Camuflagem de Brasília com um boné da companhia. Foi com esse apoio do deputado federal que a Sig Sauer recebeu autorização para fabricar pistolas na Imbel, empresa que é ligada ao Exército, segundo decreto no Diário Oficial da União. Na época, em post publicado no Facebook, Eduardo mostrou “expectativa” também pela produção de fuzis e submetralhadoras.

O presidente já tinha vídeo armamentista circulando antes de ser eleito, como na visita a um estande em maio de 2018. Na ocasião, negou ser garoto-propaganda, mas apareceu falando do lançamento de um fuzil e dizendo que “se eu chegar lá, você, cidadão do bem, vai ter isso em casa”. Ainda durante a campanha, passou a defender o fim do monopólio da empresa e a falar sobre armas apresentando defeitos e disparos acidentais, com mortes de policiais. Em 2020, após decretos que facilitam a compra de armas, o já presidente eleito viajou para a Índia e levou representante da Taurus para assinar uma joint venture com a local Jindal Group, para fabricação de armas naquele país com tecnologia brasileira. Em julho de 2021, em feira na cidade de Caxias do Sul (RS), aceitou o revólver de grafeno que ganhou de presente do CEO da Taurus, Salesio Nuhs.

Divulgação

O problema não é apenas a participação da família do presidente em compras suspeitas. Para especialistas, também é grave a divulgação da cultura armamentista e a liberação indiscriminada de armas e munições que podem abastecer arsenais clandestinos e acabar na mão de facções criminosas. Para Juliana, a supervalorização de armamentos “provém de uma cultura belicosa que valoriza a morte e não a eliminação das causas que fomentam os crimes”.

Laços antigos

Flávio Bolsonaro não é o único filho do presidente que exibe laços com a Sig Sauer. Eduardo Bolsonaro, o 03, já fez propaganda explícita da fabricante (acima). Em abril de 2019, divulgou foto no Twitter entre “o secretário do PSL, Paulo Guedes” (Paulo Guedes Landim de Carvalho, ou PG, que virou assessor da presidência da Embratur) e Marcelo Costa, “representante da Sig Sauer”. Na época, reclamou das “burocracias exageradas para desestimular o livre mercado” para empresas bélicas se instalarem no Brasil