Não são nem 8 horas e Matheus já está acordado, vestindo seu macacão de estampa de cachorros, meias coloridas, botinha ortopédica e óculos de armação azul. Mãe e avó terminam de arrumar o menino para a natação. É terça-feira e a agenda do dia está cheia. Depois da aula na piscina, Matheus vai voltar para casa para almoçar, de lá segue às 15h50 para a sessão de terapia ocupacional (TO) e, em seguida, às 18 horas, tem hidroterapia.

Os outros dias da semana não são menos corridos. Fisioterapia, TO, fono, estimulação visual, natação, hidro. Matheus e a família não têm descanso na batalha contra as sequelas da microcefalia. São dez sessões semanais de seis diferentes terapias, realizadas diariamente, de segunda a sexta.

Toda a assistência que falta ao pequeno Alessandro, preso em filas de espera, foi ofertada ao longo dos últimos meses a Matheus, um dos poucos bebês vítimas da epidemia de microcefalia a conquistar, graças às melhores condições econômicas dos pais e ao suporte familiar, o amparo que todas as crianças mereciam.

A situação, no entanto, não evita que o menino e sua família, moradores de um bairro de classe média de Recife, sofram com as limitações impostas pela microcefalia, diagnosticada em setembro de 2015, somente após o nascimento da crianças. Descobrir a má-formação do filho na sala de parto, após uma gravidez aparentemente tranquila, tirou o chão da bancária Isabel Cristina Gomes de Albuquerque, de 39 anos, e do consultor de vendas Moisés Matias de Albuquerque, de 37 anos.

Até então, o casal estava radiante com a gravidez e com a fase que vivia. Os dois organizaram chá de bebê, contrataram um estúdio para fotografá-los durante a gravidez e, ansiosos em registrar cada momento do crescimento do menino, já deixaram pago o pacote de fotos de Matheus aos três, seis e nove meses de idade.

Preparavam ainda, para depois do nascimento do filho, a mudança para um apartamento próprio. De repente, tudo desabou.”Descobrimos da pior maneira possível. A neonatal só disse no centro cirúrgico que precisava levar meu filho porque ele não era normal”, conta a mãe.

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O pré-natal feito em um plano de saúde não foi capaz de verificar a má-formação ainda durante a gestação. Como na época a relação entre zika e microcefalia ainda não era conhecida, o desespero e a surpresa do casal foram ainda maiores. Procuraram logo o consultório particular de um geneticista para entender o que havia acontecido, mas as causas genéticas foram descartadas. Isabel também fez exames que poderiam acusar uma possível causa infecciosa para a microcefalia do bebê: rubéola, citomegalovírus, toxoplasmose. Todos negativos.

A pergunta sobre o que teria provocado a má-formação ficou sem resposta por meses, tempo que o casal não quis esperar para procurar tratamento para o problema. Aos 20 dias de vida, Matheus começou fisioterapia, terapia ocupacional e fono na Associação Novo Rumo, instituição sem fins lucrativos que atende crianças com diferentes tipos de deficiência na capital pernambucana. Pelo tratamento, a entidade cobra um valor simbólico de R$ 150 por mês.

“A gente não esperou muito pelo serviço público, achou melhor partir para o privado porque todo médico dizia que o início precoce era muito importante. Só fomos conseguir vaga na AACD e na Fundação Altino Ventura em fevereiro. Se tivéssemos esperado só o tratamento gratuito, o Matheus teria perdido cinco meses de estimulação”, diz Isabel.

No caso do menino, a parte motora foi a mais afetada pela lesão neurológica causada pelo zika. Assim como acontece com a maioria das crianças com microcefalia, Matheus têm um quadro de espasticidade, ou seja, os músculos são mais rígidos e respondem de forma excessivamente reflexiva. Isso dificulta o processo de desenvolvimento da criança na aquisição de habilidades como o controle de pescoço e de tronco, primeiros passos para atividades como sentar, engatinhar e andar. A espasticidade também dificulta a alimentação, pois a criança costuma projetar involuntariamente a língua para a frente, impedindo a ingestão da comida. Na parte visual, o menino desenvolveu estrabismo.

Mesmo com todas as limitações, Matheus passou a responder bem à maratona de terapias de reabilitação. Aos seis meses, já havia conquistado o controle do pescoço e demonstrava interesse por brinquedos e atenção a ruídos do ambiente. Também passou a gargalhar com as brincadeiras da mãe. Foi nessa mesma época que começou a usar óculos para corrigir o problema visual. Isabel também decidiu apertar o orçamento para possibilitar um atendimento individualizado de estimulação visual num hospital especializado particular de Recife.

O tratamento corria bem, mas a família se viu em um dilema. A licença-maternidade de Isabel acabaria em breve e Moisés trabalha das 7h às 17h. Os pais não teriam condições de cuidar do menino e levá-lo para as dez sessões semanais de reabilitação, de segunda a sexta, manhã, tarde e noite.

“A gente até pensa em parar de trabalhar, mas a questão financeira impede. Precisamos dos dois salários para conseguir oferecer tudo que for possível para Matheus. Além disso, tenho um bom plano de saúde da empresa. Graças a isso que consigo fazer as consultas e os exames na rede privada”, conta.

Diante do dilema, a família toda teve de se unir ainda mais. A mãe de Moisés, que eventualmente já vinha ajudando o casal com os cuidados do menino, resolveu parar de trabalhar e se mudou para a casa do filho para dedicar-se integralmente ao neto. “Como o horário de trabalho da Isabel é flexível, às vezes ela leva e o Moisés busca no tratamento, e sou eu que fico com ele durante as terapias e em casa”, conta Geralda Matias de Albuquerque, de 58 anos, com orgulho e sorriso no rosto de quem parece ter se redescoberto. “Pode parecer que eu abandonei a minha vida, mas eu sou muito mais feliz agora”, diz.

Com a possibilidade de dar seguimento a todas as terapias, a família foi se animando e comemorando cada vez mais os pequenos avanços do menino. Aos dez meses, Matheus começou a natação e, hoje, com dois meses de aula, já prende a respiração quando a mãe o conduz para um mergulho. “É um ganho diário e contínuo. Foi impressionante ver que logo nas primeiras aulas, ele conseguiu perceber o momento do mergulho. A professora conta 1, 2 e 3 e ele já fecha o olhinho porque sabe que vai para debaixo d’água”, conta a mãe do bebê.

Alegria semelhante teve a família ao ver o menino batendo palminhas durante um parabéns. “Para quem está de fora, pode parecer uma coisa natural de qualquer criança, mas para a gente foi uma felicidade muito grande.” As terapias de estimulação e reabilitação também permitiram maior controle do tronco e dos braços a Matheus. Hoje, ele já consegue segurar objetos, virar na cama e manter-se sentado por alguns segundos sem apoio.

A alimentação também pôde ser incrementada com o auxílio das sessões de fonoaudiologia. “Como antes ele projetava muito a língua, a gente tinha que ficar duas horas tentando para conseguir dar uma quantidade muito pequena de papinha. Isso melhorou demais”, conta a mãe. Com um ano, o cardápio de Matheus pode até dar inveja aos adeptos de uma rotina fitness. “Cozinhamos abóbora, feijão verde, batata, cenoura, couve, tomate, cebola e coentro e amassamos tudo. A gente dá arroz integral e soja também, além das frutas”, conta Isabel.


Se dependesse dos pais, o menino teria acesso a ainda mais atividades. “O mais difícil tem sido conciliar toda essa rotina. Geralmente a gente não pode optar pelos horários das terapias, principalmente nos locais onde o atendimento é gratuito. Se faltar, perde a vaga. E se faltar no emprego, posso ser demitida.”.

Mas para a família, a felicidade e a evolução de Matheus têm compensado todos os sacrifícios. O desânimo inicial da família com as possíveis limitações do menino se transformou em combustível para buscar tudo que possa melhorar a qualidade de vida do pequeno.

Se depender do sorriso que Matheus estampa constantemente ao lado dos pais e da avó, o objetivo da família está sendo conquistado. A sessão de fotos contratada por Isabel e Moisés para os primeiros meses de vida do filho, esquecida depois do parto por causa do desespero, acaba de ser retomada. “Já tínhamos pago tudo, mas, no começo, o choque foi tão grande que eu nem fui atrás. Agora decidimos fazer”, diz.

O menino já tem experiência nesse tipo de atividade. Em junho, foi uma das estrelas de um ensaio do fotógrafo pernambucano Joelson Souza que retratou vários bebês com microcefalia, contra o preconceito. “Matheus é um bebê especial, mas não por causa da deficiência, é especial porque é o nosso filho”, diz Moisés.


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