No reino das fadas onde vive Clarissa, de 6 anos, a covid-19 é um problema superado. Graças ao trabalho da menina e das outras duas presidentas do mundo encantado, que providenciaram vacinas para todos – sim, fadas sensatas. A mãe dá corda às invenções da filha e prefere que exista esperança pelo menos no reino imaginário de Clarissa.

Famílias com crianças pequenas tentam preservá-las do horror da pandemia no País. Notícias sobre recorde de mortes e adoecimento de parentes e amigos chegam aos celulares a todo o tempo. Os pais abafam a dor em choros no chuveiro e lágrimas secadas às escondidas. Com os filhos, inventam brincadeiras, fantasias, dias temáticos, acampamentos no sofá.

Em um apartamento em Brasília, a professora Ludmila Tavares, de 35 anos, lê histórias para a menina, confecciona casinhas de bonecas, foguete de sucata. Pirâmides de papel construídas para as aulas viraram desculpa para falar do Egito. E, agora, Clarissa planeja uma expedição arqueológica para achar nas tumbas tesouros tão valiosos que comprem não só uma boneca LOL como doses de vacina.

No vocabulário de Rafael, de 3 anos e meio, o coronavírus é palavra inexistente. “Escolhi não contar”, diz a mãe Tatyana Pinotti, de 36 anos. Quando era criança, ela lembra de ter se impressionado com imagens na TV da Guerra do Golfo, no Oriente Médio, e não entendia que as bombas estavam longe. Agora, tenta afastar as cenas de enterros em covas coletivas e hospitais lotados do filho.

“Se algo tão distante me tocou tão profundamente quando eu tinha o dobro da idade dele, como dizer que o vírus não está do outro lado do mundo, mas ali, da porta para fora?”. Com o marido e a avó do menino, evitam conversar sobre o tema quando Rafael está perto. “No fim do dia, a marca de 3 mil mortos. A gente não consegue se acostumar. É uma porrada.”

Escondida no banheiro para ver notícias e vídeos sobre a pandemia, Tatyana chora. O menino vê o rosto vermelho da mãe, acha logo a solução. “Um minuto, já sei”. Corre e volta com a mão besuntada de pomada – a mesma que protege a pele de bebê. “Faço o que posso para deixá-lo feliz. Depois, pretendo contar da forma mais leve que conseguir”, diz a mãe, que se mudou com a família para o interior paulista. Apesar da angústia, ela se considera privilegiada por ter espaço no campo.

Henrique, de 4 anos, enfileira a coleção de dinossauros no chão do apartamento, em São Paulo, e, quando tem de sair por algum motivo, a máscara ninja dá poderes especiais. Vestido de herói, o menino ergue seu martelo do Thor, que elimina qualquer ameaça. “Ele sabe que tem um vírus chato, mas nada mais do que isso”, diz Patrícia Yanez, a mãe, uma administradora de benefícios, de 45 anos.

Patrícia também escolhe as máscaras mais divertidas para ela própria usar e já foi até fantasiada à padaria para agradar o filho, que vê o disfarce como superpoder. À noite, o menino dorme, e os pais vão, enfim, se atualizar sobre o caos no País. “Todo dia, tem alguém que viu um parente partir”, diz Patrícia, que tem recebido acompanhamento psiquiátrico.

O brinquedo preferido de Arthur, de 1 anos e 9 meses, virou o par de tênis – que ele associa a sair de casa para brincar. Quando busca o sapato no quarto, a mãe desaba. “Tento me conter enquanto estou com ele. Tem dias mais fáceis, outros mais difíceis”, diz Elisângela Lima, de 28 anos, de Canoas (RS).

Já Bruna Barbosa, de 31 anos, busca um canto sossegado no apartamento, no Rio, quando não está bem, e passa o bastão dos cuidados dos filhos ao marido. Ela teve de superar o luto pela perda do pai, que morava longe, ver o enterro por vídeo e, sem tempo de processar tudo, voltar a cuidar do filho, de 1 ano, e da filha, de 4. Bruna e a menina têm aula de ioga pelo celular. O pai promove treinos, com socos em travesseiros, para se tornarem Power Rangers. E, assim, contornam juntos a dor.

Segundo as mães, os sentimentos são contraditórios. Pesa a tentativa de preservar as crianças, mas a ingenuidade delas traz leveza. “Saber que temos o Henrique dá esperança de que as coisas podem ficar melhores”, diz Patrícia.

Proteção

Para Rosely Sayão, psicóloga, não é possível “blindar” completamente a criança de emoções relativas à pandemia. Elas têm conexão intensa com os pais e percebem as emoções deles, mesmo se não verbalizadas. “O que podemos fazer é evitar os detalhes”, diz Rosely, que cita imagens de enterros, comuns nos noticiários.

“A criança até 12 anos não tem recursos pessoais para lidar com essas questões. Se nós adultos ficamos espantados com notícias, imagina como cai sobre os ombros da criança, que não sabe o que fazer”, diz Rosely, colunista do Estadão. “De um lado, há a situação externa grave da pandemia e, de outro, pais muito desgastados”, diz.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.