A proteção das crianças tornou-se um pilar no combate à violência contra a mulher na Espanha, um país frequentemente tomado como modelo na luta pelos direitos das mulheres.

José Antonio A. foi condenado na semana passada à prisão perpétua por ter assassinado seu filho Jordi, de 11 anos, em abril de 2022, com 27 facadas, e pela violência psicológica que isso causou à mãe.

Jordi, a quem o pai permitiu atender um telefonema da mãe antes de morrer, era o que María Dolores “mais amava no mundo”, e os acontecimentos não teriam ocorrido se ela não tivesse lhe deixado, afirmou o agressor no tribunal.

Este crime, de grande repercussão midiática, foi apresentado como um caso clássico da chamada “violência vicária”.

Essa expressão se tornou comum na Espanha, onde o presidente do Governo, Pedro Sánchez, a utilizou para se referir ao assassinato que chocou o país, em 2021, de duas meninas nas Ilhas Canárias.

Na época, sua mãe disse que suas mortes não foram “em vão”, porque “graças a elas se conhece o significado da violência vicária”.

– Mais de 1.400 crianças em risco –

A psicóloga argentina Sonia Vaccaro cunhou o termo: “É uma forma de violência que o agressor da mulher usa quando não tem mais acesso a ela” e “tem que usar um intermediário para prejudicá-la” após a separação.

A violência vicária pode ser extrema, como no caso do infanticídio, mas também pode assumir formas mais cotidianas, como negar à criança tratamento médico prescrito, não levá-la às atividades esportivas que ela gosta ou devolvê-la à mãe com roupas sujas, explica Vaccaro à AFP.

Assim como no caso dos feminicídios, o governo mantém estatísticas sobre a violência vicária.

Segundo os dados, desde 2013, 52 crianças foram assassinadas pelo pai, companheiro ou ex-companheiro da mãe.

E 1.444 enfrentaram risco de violência vicária só em janeiro, um número que aumentou 39,4% em um ano.

Durante muito tempo, essa violência não foi considerada diretamente ligada à violência de gênero. Mas em 2011, a morte de duas crianças, de 2 e 6 anos, mudou essa situação.

O pai, José Bretón, que havia acabado de ser abandonado pela mãe, disse que as havia perdido em um parque, mas os restos mortais queimados das crianças foram encontrados no ano seguinte, em terras pertencentes à família do homem.

Ele foi condenado por duplo infanticídio, mas absolvido em 2014 do crime de violência psicológica contra a mãe.

– Perder a guarda –

A Justiça disse à mulher que ela “não é vítima de nada”, estima Marisa Soleto, diretora da fundação “Mujeres”, uma das principais organizações feministas da Espanha.

“Não havia nenhum mecanismo judicial que vinculasse o assassinato das crianças ao abuso da mãe”, explica Soleto.

Esse defeito foi corrigido com a adoção em 2017, com o apoio de todas as partes, de um Pacto de Estado sobre Violência de Gênero, que prevê a suspensão da guarda ou das visitas se a criança tiver testemunhado violência de gênero ou se o progenitor estiver preso pela referida violência, detalha Teresa Peramato, procuradora-geral responsável pela violência contra a mulher.

O princípio foi ratificado em 2021 em uma lei de proteção infantil, que fez disparar o número de suspensões de guarda para casos de violência de gênero, o qual aumentou 329% no trimestre seguinte, segundo dados do Ministério da Justiça.

A lei proibiu o uso da “alienação parental” perante um juiz, argumento utilizado em outros países pelos pais para acusar suas ex-companheiras de manipularem os filhos para impedi-los de vê-los.

Apesar do reforço do arsenal jurídico, alguns juízes relutam em utilizá-lo, lamenta Peramato.

“Precisamos de normas que vão além do estereótipo da sacrossanta família napoleônica, no sentido do Código Civil Napoleônico que colocou o ‘paterfamilias’ no centro”, afirma Soleto. Porque “um abusador não é um bom pai”, acrescenta, ecoando o slogan das feministas espanholas.

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