Neste sábado, 3, na Cinemateca Brasileira, será lançada a coletânea de textos de Paulo Emílio Sales Gomes, Uma Situação Colonial? Nem poderia ser em outro local. 2016 é o centenário do nosso crítico mais importante. Comemoram-se, também, os 70 anos da Cinemateca Brasileira, fundada pelo próprio Paulo Emílio que, além de crítico, professor universitário, ensaísta e biógrafo (de Jean Vigo e Humberto Mauro), foi também agitador cultural e principal animador da ideia de uma cinemateca no Brasil.

Uma Situação Colonial? não é apenas reedição dos textos de Paulo Emílio, muitos dos quais tiveram sua primeira edição no Suplemento Literário do Estado. Seu organizador, o professor da USP e profundo conhecedor da obra do crítico, Carlos Augusto Calil, propõe novo arranjo dos escritos, de modo que possam ser lidos numa continuidade, testemunho de um trajeto intelectual. Isso se dá, em especial, em relação ao ensaio fundamental Cinema: Uma Trajetória no Subdesenvolvimento, publicado em 1973 na revista Argumento e que vem desafiando intérpretes. Calil, no posfácio do volume (O Caminho de S. Bernardo) mostra como Trajetória no Subdesenvolvimento não saiu pronto da cabeça de Paulo Emílio, mas é fruto de longo, acidentado e trabalhoso percurso de meditação sobre o cinema brasileiro.

O volume conta ainda com prefácios de Antonio Candido (Um Homem Fabuloso) e Ismail Xavier (A Crítica não Indiferente). É livro obrigatório na estante de qualquer um que se interesse pelo cinema brasileiro e deseje reencontrar sua voz mais lúcida, agora com novos ecos e ressonâncias. Abaixo, a entrevista de Carlos Augusto Calil.

Qual o sentido do rearranjo desses textos de Paulo Emílio já publicados em outra ordem e em outros contextos?

Os livros de Paulo Emílio editados na década de 1980 estão esgotados. Os direitos da obra do crítico hoje pertencem à Companhia das Letras. Ao reeditá-los, preferi experimentar um novo arranjo, que possibilita uma leitura mais coerente da obra dele. O leitor é convidado a acompanhar a trajetória do pensamento de Paulo Emílio, ao longo do tempo.

Uma coisa que me chamou muito a atenção foi o que você chamou a conversão de Paulo Emílio ao cinema brasileiro, passando pelo “caminho de S. Bernardo”, isto é, pela crise da Vera Cruz. Poderia comentar esse fato?

Paulo Emílio, então crítico de cinema e diretor da Cinemateca Brasileira, foi gradativamente se envolvendo com as questões institucionais do cinema brasileiro a partir da crise aguda deflagrada pela falência traumática da Vera Cruz, que arrastou a atividade para os braços do governo, de onde nunca mais sairia. Na medida em que tomava conhecimento dos estudos sobre a economia do cinema, o crítico foi constatando a impossibilidade do cinema brasileiro se sustentar no próprio mercado, que na verdade pertencia ao cinema estrangeiro, que atuava por meio de dumping. Essa é a origem do texto Uma Situação Colonial?, que foi decisivo para a tomada de consciência política, expressa com brilhantismo em Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. Há no processo uma evolução intelectual que as edições anteriores não explicitavam.

Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento, para muitos o mais importante ensaio escrito por Paulo Emílio. Esse texto, segundo sua afirmação, seria apresentado sem a devida contextualização, ou seja, como culminância de um percurso. Acha que a recontextualização desse ensaio é o que o atual livro tem de mais significativo?

Sem dúvida. A atual antologia permite ainda compreender melhor a estratégia final do crítico quando assume a defesa intransigente da conquista do mercado interno, instrumentalizada pela Embrafilme, a partir de 1975. Por outro lado, a antologia traz textos inéditos em livro sobre O Pagador de Promessas e Vidas Secas, obras que Paulo Emílio considerava decisivas no amadurecimento artístico do cinema brasileiro.

As reflexões de Paulo Emílio para o cinema brasileiro contemporâneo ainda nos dizem alguma coisa ou se referem a outro tempo, que já passou?

Vivemos hoje uma crise de esgotamento do modelo de intervenção do Estado na atividade. O aumento extraordinário da produção não assegurou a presença do filme brasileiro no mercado interno. Há um divórcio entre as obras e o público. Nos últimos anos, estatizou-se o cinema no Brasil sem os resultados esperados. Tudo hoje depende do financiamento público. Não era essa a expectativa da geração de Paulo Emílio. Em nome de suas ideias muito equívoco na política do cinema foi consumado. Outra questão importante suscitada pelo livro diz respeito à Cinemateca Brasileira. Há nele textos que descrevem a pungente e frustrada batalha pela implantação da Cinemateca entre nós. É uma literatura tão absurda, que compete com o melhor Kafka. A Cinemateca Brasileira depois de passar por um auge extraordinário, desde o governo Dilma vive o abandono do poder público e sua situação voltou a ser kafkiana. Disso pouca gente se dá conta, mesmo entre os cineastas e na imprensa.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.