A família Madrigal não é formada por heróis, mas todos os seus membros foram agraciados com super-poderes. A garota Julieta tem a capacidade de curar qualquer um com deliciosas receitas culinárias; a linda e perfeita Isabela possui a habilidade mágica de fazer flores e plantas crescerem por todos os cantos; Luisa foi abençoada com a força descomunal de um gigante. Até a casa encantada é capaz de realizar desejos e vontades dos parentes e moradores da região. Todos os Madrigal exalam magia – todos, exceto a simpática Maribel. Ao longo do filme, é claro, seu super-poder emergirá. “Encanto” imprime um novo sotaque às produções da Disney. O elenco inteiro é composto por personagens latinos e a história se passa em uma pequena cidade da Colômbia. É a primeira produção da Disney alocada na América do Sul desde que Zé Carioca, Pato Donald e companhia estrelaram “Alô, Amigos”, em 1942.

Assim como fez com o mercado asiático em “Raya e o Último Dragão”, repleto de referências à cultura chinesa, dessa vez o foco é a comunidade latina, cada vez mais influente nos EUA. O roteiro de “Encanto” respeita isso – e traz o realismo fantástico que se tornou popular na região graças aos livros de Gabriel García Márquez e Julio Cortázar. Lembrando “Cem Anos de Solidão”, os Madrigal são uma espécie de família Buendía em versão animada, onde os limites entre a realidade e a fantasia estão difusos.

Como toda animação da Disney, o fio condutor é a música. É por meio das canções que conhecemos as jornadas de cada personagem, seus medos e desejos. O grande destaque aqui é que o contador dessas histórias é Lin-Manuel Miranda. Responsável pelo sucesso de “Hamilton”, o porto-riquenho é o mais talentoso compositor de sua geração.

Sucesso

A parceria de Miranda com a Disney começou na trilha sonora de “Moana – Um Mar de Aventuras”, que lhe rendeu indicação ao Oscar de Melhor Canção por “How Far I’ll Go” (“Saber Quem eu sou”). Veio então o convite para colaborar com a trilha sonora de “Star Wars: O Despertar da Força”, outro sucesso. Com o lançamento do canal de streaming Disney+, seu musical “Hamilton” ganhou uma elogiada versão filmada, indicada a 12 prêmios Emmy. Miranda agora se arrisca até atrás das câmeras: “Tick, Tick… Boom” (Netflix). “Encanto” tem à frente o experiente diretor americano Byron Howard, de “Enrolados” e “Zootopia: Essa Cidade é o Bicho”, vencedor do Oscar de Animação em 2016. Ele é um dos poucos não-latinos na liderança criativa de “Encanto” – algo bem diferente daqueles tempos em que Pato Donald visitou o Brasil.

ENTREVISTA
Lin-Manuel Miranda

“Sonhava com um projeto latino da Disney”

ISTOÉ – A Disney lançou projetos globais como “Raya e o Último Dragão”, voltado ao mercado chinês, e “Encanto”, para os latinos. É importante para as crianças verem sua origem retratada em um filme da Disney?

LIN-MANUEL MIRANDA – Talvez a Disney tenha pensado nisso, mas nunca sequer utilizamos a palavra “mercado” no desenvolvimento desse projeto. Eu sempre quis participar de um projeto da Disney que se passasse na América Latina. Mais que qualquer outra coisa, queríamos que fosse sobre a família.

É um conceito difícil de levar para a tela, especialmente em uma animação, que trata geralmente de uma busca pessoal, uma jornada. É comum perder o foco nos outros personagens e se concentrar apenas no sonho do protagonista. Foi aí que pensamos: “será possível ter doze personagens em um filme da Disney, com toda a complexidade dessas relações?” Foi o que fizemos.

Por que a Colômbia foi escolhida para cenário de “Encanto”?

Porque é um lugar central para a América Latina e traz um caldeirão de influências e estilos musicais. Visitamos o país durante a preparação para o filme e nos apaixonamos imediatamente pela cultura. Foi um esforço grande para manter a autenticidade e os detalhes corretos, um cenário maravilhoso.

Você fez “Hamilton” e “Encanto”. Qual é a diferença de compor para adultos e crianças?

Nenhuma, é exatamente igual. A diferença é compor para uma animação da Disney, algo que intimida porque você sabe que fará parte de um legado que inclui algumas das melhores canções feitas para o cinema em todos os tempos. A última canção que escrevi para “Encanto” é a que Mirabel fala sobre seus sonhos, “Waiting on a Miracle”. Você sabe que ela não pode apenas ser boa, tem que ser do nível de “Into the Unknown”, de “Frozen”, “Reflection”, de “Mulan”, “Out There”, do “Corcunda de Notre Dame”, “Part of Your World”, de “A Pequena Sereia”… É assustador! Grande parte do trabalho consiste em deixar isso de lado e tentar encontrar seu caminho. A única forma que conheço de escrever canções é me colocar na pele do personagem, tentar sentir o que ele sente. Aí converso comigo mesmo até que extrair a verdade. Isso é igual se eu for Aaron Burr, de “Hamilton”, ou Mirabel Madrigal, de “Encanto”. O trabalho é o mesmo.

De Hamilton a Maribel, os personagens que você dá voz costumam ser fora dos padrões. Você se identifica com isso?

Acho que todo compositor se sente dessa maneira. Também é assim em “Tick, Tick… Boom”, filme que acabei de dirigir. Um dos segredos dos compositores é que há sempre um gravador ligado ao nosso cérebro. É comum ouvir gente chegar para mim e perguntar: “você está prestando atenção no que estou falando ou está pensando em alguma melodia enquanto fala comigo?” Fui um garoto meio porto-riquenho meio mexicano, que cresceu em um bairro de maioria dominicana em Nova York, nos EUA. Frequentei uma escola de maioria branca. Passei verões em Porto Rico, e meu espanhol não era muito bom. Ser fora dos padrões é uma boa receita para um compositor. Se sentir um pouco fora de lugar o tempo inteiro é interessante para quem leva uma vida criativa.

Qual porcentagem dos personagens é autobiográfica?

Toda a equipe de “Encanto” colaborou com histórias pessoais. A canção-tema da personagem Luisa é uma carta de amor – e um pedido de perdão – à minha irmã mais velha, e a todos os primogênitos espalhados por aí. Eles têm mais responsabilidades e levam mais broncas, porque os geralmente não dão tanta atenção aos irmãos mais novos. Há um peso em ser o irmão mais velho. Sei que minha irmã sentia isso, e pensei muito nela na hora de compor. Há um trecho em outra canção, “Nós não falamos sobre Bruno”, em que os personagens se interrompem o tempo inteiro – é exatamente como meus pais agiam quando tentavam contar uma história. Todos esses detalhes vieram de experiências pessoais que buscamos para encontrar esses momentos.

Agora que já se passou alguns anos da febre de “Hamilton”, qual você acha que foi o segredo do enorme sucesso desse musical?

Não sei. Não acho que seja por causa do patriotismo ou da independência dos EUA, mas sobre o que fazemos com o nosso tempo nesse planeta. Hamilton e os outros personagens usaram o tempo que tinham para atingir seus objetivos. Quando escrevi as letras, costumavam pensar: “e o que eu estou fazendo com o meu tempo?” É isso que fica na cabeça quando você sai do espetáculo. Você olha para a sua vida e avalia o que está fazendo com seu tempo. Afinal, temos uma única vida e acho que as pessoas se identificam com isso. O musical as obriga a refletir sobre questões de suas próprias vidas.

Bem, você está fazendo bastante com seu tempo: participou de quatro filmes lançados apenas em 2021…

É verdade, foi esse o impacto que compor “Hamilton” teve em mim. Acho que é o “molho extra” que as pessoas buscam. Em um trecho de “Encanto”, Mirabel diz que “mesmo em nossos momentos mais sombrios, há luz onde menos esperamos”. A humanidade está vivendo um desses momentos com a pandemia?

Como Charles Dickens disse em “Um Conto de Duas Cidades”, “foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos”. Criar é um lugar seguro para mim, mesmo quando o resto do mundo está pegando fogo. Não consigo controlar os problemas e sofrimentos dos outros, mas posso controlar o que trago para o mundo, o que coloco na página em branco. Esse tem sido meu foco na fase mais recente da pandemia. No início eu estava tão deprimido e louco como todo mundo. Me reconectar com minha criatividade tem sido um jeito de superar a pandemia.

Você se sente um porta-voz da comunidade latina nos EUA e no mundo?

Espero que não! Tenho sorte porque faço o que amo para viver e, assim, consigo abrir mais portas para que outros latinos possam fazer o mesmo. Estou aqui porque vi Raul Julia, Rita Moreno, Rubén Blades, o grande Carlos Vives, e eles me mostraram que era possível viver de contar histórias por meio da música. Espero que o meu trabalho incentive mais gente a ver que isso é possível. Continuarei a trabalhar para abrir mais portas porque sei que não há falta de talento, apenas escassez de oportunidades. É nossa tarefa escancarar essas portas para que os outros possam entrar.