RESUMO

• Agressão inédita do Irã pode levar a uma escalada militar sem controle
• Potências mundiais buscam dissuadir Israel de uma retaliação perigosa
• Mas parecem impotentes para barrar uma resposta que leve à ampliação do extremismo na região
• A disputa no Oriente Médio pode se tornar mundial

 

Na madrugada de domingo, 14, uma ataque direto do Irã a Israel mudou a geopolítica do Oriente Médio, alarmou a comunidade internacional pelo risco de um conflito nuclear e comprovou que o mundo vive uma nova fase de guerras globais com consequências imprevisíveis. Numa escalada das hostilidades iniciadas com a incursão terrorista do grupo Hamas em 7 de outubro passado, que custou só naquele dia a vida de 1.200 israelenses, a República Islâmica do Irã desferiu um bombardeio massivo. Foram lançados 185 drones, 110 mísseis balísticos e 36 mísseis de cruzeiro ao país. A maioria dos artefatos saiu do Irã, mas uma parte pequena partiu de bases no Iraque e Iêmen.

Mísseis e drones atingem Jerusalém, no dia 14 (acima). Sistema de Defesa antimísseis israelense é acionado (abaixo) (Crédito:Mohammad Hamad)
(Tomer Neuberg)
(AFP)

Acima, o rastro luminoso de artefatos sobre mesquita em Jerusalém 

O argumento do regime dos aiatolás é que a agressão foi uma retaliação pelo bombardeio de Israel a sua embaixada na Síria no último dia 1º, quando 11 militares iranianos foram mortos, inclusive o general Mohammad Reza Zahedi, comandante sênior da Guarda Revolucionária, grupo de elite que se reporta diretamente ao líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei. As Forças de Defesa de Israel (FDI) não reivindicaram a autoria da ação, como é comum nessas situações, porém há pouca dúvida da sua autoria.

A justificativa não muda a gravidade do ataque coordenado contra Israel. Há poucos anos, o mundo parecia encontrar uma nova época de paz e prosperidade. Não só havia a ilusão de que a OTAN, a aliança militar ocidental, se tornaria irrelevante pela falta de ameaças concretas, como Israel parecia se encaminhar para um processo de pacificação histórica com seus vizinhos do Oriente Médio e inimigos do mundo muçulmano.

Além de Egito e Jordânia, Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão firmaram tratados de normalização diplomática. A Arábia Saudita seria o próximo país a tomar esse caminho. Mas o cenário mudou dramaticamente. Agora, o mundo parece à beira do abismo com a radicalização acelerada na região agravada pela invasão de Putin à Ucrânia, que assusta a Europa, e leva o bloco se rearmar e promover o renascimento da OTAN.

(Charly Triballeau)
(David Dee Delgado)
(Charly Triballeau)

O premiê Benjamin Netanyahu (acima) se reúne com o Gabinete de Guerra israelense após o ataque do dia 14. Nas fotos centrais, o embaixador israelense Gilad Erlan troca acusações com o representante iraniano Amir Saeid Iravani no Conselho de Segurança da ONU. Embaixo, Joe Biden e assessores de Segurança avaliam a crise na Casa Branca

(Charly Triballeau)

“Espetacularização”

Nem o fato de os ataques de domingo terem sido concebidos como efeito de “espetacularização” mas pouca efetividade atenua o clima de apreensão. De fato, quase todos os artefatos foram abatidos antes de atingirem seu alvo.

Ficou evidente, segundo, analistas, que houve o cuidado da parte do Irã em evitar que o ataque escalasse de forma imprevisível. “Israel foi avisada 72 horas antes sobre qual tipo de ataque seria, quais seriam os alvos e em qual faixa de horário. Foi uma resposta coreografada, para não causar muitos danos. O Irã acertou a base militar de onde teria saído o caça israelense rumo à sua embaixada em Damasco, mas a ação funcionou mais como pressão psicológica, para divulgar as cenas de mísseis circulando por todas as cidades de Israel”, diz Vladimir  Feijó, especialista em Direito Internacional.

A resposta de Israel, por outro lado, serviu para divulgar a eficiência da sua Defesa, da sua tecnologia.
O Irã lançou drones mais lentos, que demoraram duas horas para chegar a Israel, e os mísseis utilizados também não foram os mais rápidos.
Israel teve tempo para recalibrar seus mísseis antibalísticos, e a antecipação do bombardeio também permitiu que EUA, Reino Unido, França e Jordânia ajudassem a abatê-los.

O líder supremo do Irã, aiatolá Khamenei (acima), havia anunciado que seu país retaliaria Israel pelo ataque à sua embaixada na Síria (Crédito:Hossein Fatemi)
O porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Daniel Hagari, mostra um míssel lançado pelo Irã que caiu na base militar de Julis. (Crédito:Gil Cohen-Magen)

A ação serviu para tirar Benjamin Netanyahu das cordas. O primeiro-ministro israelense está sendo questionado em seu país pela ação ineficiente na eliminação do grupo Hamas em Gaza, sem a libertação dos reféns e com uma tragédia humanitária que afasta seus aliados e tende a isolar o país no cenário internacional.

Passam de 32 mil os palestinos mortos em Gaza, sendo metade crianças e adolescentes, conforme números recentes. O apoio militar que Israel recebeu, inclusive da Jordânia, foi providencial e ocorreu num momento delicado em que o premiê está sendo duramente pressionado pelo maior aliado, os EUA, para reverter a tragédia humanitária em Gaza.

Toda a preocupação agora é com a resposta que o israelense dará. O medo das potências é que a reação militar saia do controle, envolvendo outros países no conflito. “Israel deve estar ponderando se parte para um ataque direito ou se atém ao esquema do próprio Irã, alguma ação limitada”, avalia Feijó.

Joe Biden não é o único líder que tem ativamente tentado evitar uma resposta perigosa de Israel. Reino Unido, Alemanha e França tentam dissuadir o país de retaliar o Irã. Mas Netanyahu, depois de receber na quarta-feira a visita dos ministros das Relações Exteriores do Reino Unido (David Cameron) e da Alemanha (Annalena Baerbock), não pareceu persuadido.

“Eles têm todos os tipos de sugestões e conselhos. Aprecio isso, mas quero deixar claro: tomaremos nossa própria decisão”, declarou.

Entre as possíveis retaliações, avaliam especialistas, estão:
• um ataque direto ao Irã,
• ciberataques,
• ou assassinatos de alvos ligados ao regime de Teerã.

O objetivo seria mandar uma mensagem clara, marcar uma posição de força e ao mesmo tempo evitar a escalada do conflito. Internamente, a oposição a Netanyahu considera que a agressão iraniana marca o fracasso da política histórica de dissuasão israelense.

Na visão dos críticos, essa política foi praticamente implodida depois do fiasco de 7 de outubro e do bombardeio massivo do regime dos aiatolás. O Irã nunca havia atacado diretamente o território israelense. Nas últimas décadas, fez isso apenas por meio de grupos terroristas armados e orientados pelo regime, como o próprio Hamas (em Gaza), o Hezbollah (no Líbano) e os Houthis (no Iêmen).

Em outras palavras, Netanyahu, que manteve sua longevidade projetando uma política de “segurança em primeiro lugar” (até como justificativa para impedir a criação de um Estado palestino e garantir a expansão das colônias judaicas na Cisjordânia), conseguiu exatamente o contrário: enfraquecer o país diante de seus inimigos, que já não temem o seu poderio militar.

Campo de refugiados de Jeballya é atingido no dia 13. Tragédia humanitária com a resposta militar de Israel ao ataque do grupo Hamas em 7 de outubro tem levantado críticas da comunidade internacional e isolado o país (Crédito:Mahmoud Issa)

Retaliação de Israel

Uma forma de evitar uma resposta perigosa de Israel seria diminuir a ameaça representada pelo Irã e conter a sua expansão bélica. O país já sofre um grande número de sanções, mas isso não tem contido o regime, que se escora na retórica bélica e no discurso antiamericano para não se fragilizar diante da opinião pública, ainda que protestos internos sejam cada vez mais frequentes.

Mesmo assim, novas sanções são analisadas neste momento por um grupo de sete nações, incluindo EUA, Reino Unido e Alemanha.

O grande temor é que o Irã consiga atingir o objetivo de desenvolver armas nucleares, algo que sempre foi negado oficialmente, ainda que tudo não passe de um jogo de cena. Desde 2018, quando Donald Trump rompeu o acordo nuclear com o Irã, removendo na prática o controle de inspetores da ONU sobre as suas unidades de enriquecimento de urânio, o país acelerou o desenvolvimento de sua capacidade nuclear.

Os ataques do dia 14 reavivaram esse receio. Mesmo sem contar com a bomba atômica e sofrendo grave crise econômica, o Irã reforçou sua produção militar nos últimos anos com a fabricação de drones. É um dos principais fornecedores desse tipo de armamento para Vladimir Putin atacar a Ucrânia.

Embaixada do Irã em Damasco (Síria) é atingida por um bombardeio no dia 1o, matando um comandante sênior da Guarda Revolucionária. O Irã acusou Israel e diz que o ataque no dia 14 foi em represália a essa ação (Crédito:Maher Al Mounes)

Biden e Netanyahu

Os atores estão reagindo racionalmente, avalia o cientista político Leandro Consentino. “Netanyahu tenta ampliar o conflito e estendê-lo o quanto puder, para manter de alguma forma a relevância de seu governo, que estava com a popularidade em baixa. Está jogando como lhe favorece, sem se preocupar com um aliado [Joe Biden] que não o agrada.”

O cálculo do presidente americano é completamente outro. “Ele está em uma sinuca complicada, precisando mostrar uma postura mais agressiva, dado que ocorreu um ataque a um aliado dos EUA. Mas o democrata não quer tomar partido em uma ação bélica aberta, mesmo porque não se alinha a Netanyahu, que é mais próximo de Trump, seu adversário na eleição à Presidência”, diz o especialista.

Para o israelense, é até bom que o conflito se prolongue para enfraquecer Biden no pleito de novembro nos EUA. Para Biden, trata-se de um nó complicado a desatar, com questões de Estado misturadas à situação de governo. Qualquer erro de cálculo pode custar sua reeleição. Seus passos têm de ser minuciosamente calculados.

Para os EUA, há ainda a questão do custo de apoiar Israel. Pelo menos dois terços dos recursos utilizados pela defesa de Israel no ataque do dia 14 ficaram a cargo dos EUA, segundo Feijó. “Portais de Israel mencionaram US$ 1 bilhão, do total de US$ 1,3 bilhão, com o outro terço dividido entre Israel, Reino Unido, França e Jordânia, gastos em apenas uma noite”, afirma.

Isso inclui caças e mísseis lançados do solo, que podem ter partido de bases de países da OTAN, como França e Reino Unido mas também Turquia, Emirados Árabes Unidos ou Arábia Saudita. “Em campanha presidencial e a população americana sofrendo com inflação, para Biden esse bilhão de dólares é muito dinheiro. Ele tem compromisso histórico, mas precisa controlar a ajuda econômica”, afirma.

O eventual alastramento do conflito também aumenta a incerteza sobre a economia mundial. “Na retomada pós-pandemia, em 2021-2022, o preço do barril de petróleo passou de US$ 38 para US$ 60, sinalizando a volta do interesse por compras e contratos futuros. Acreditava-se no crescimento da economia e, para isso, era preciso contar com mais combustível”, destaca o economista Alessandro Azzoni, especializado em mercados internacionais.

Porém, a invasão da Ucrânia, em 2022, limitou as exportações de um fornecedor importante de petróleo – a Rússia –, o que levou o barril a US$ 120 e a inflação em países na Europa batendo em altíssimos 9%. Nos EUA, há 12 meses está nos 3,5%. “Nestes dois anos o mercado se acalmou e o preço do barril havia se estabilizado em torno dos US$ 70. Agora, em meio ao turbilhão Israel-Irã e sem petroleiros navegando nessa zona de guerra, o preço do barril chegou a US$ 90. A perspectiva de desaquecimento econômico e de alta inflacionária afasta investidores, que saem de economias com maior risco, como o Brasil, para aplicar em títulos americanos”, exemplifica o economista.

Uma deterioração da situação no Oriente Médio agrava o cenário. O Irã torna-se preocupação para o mundo todo, porque ouve Vladimir Putin e também a China, o que pode arrastar a disputa com Israel para uma proporção global, diz Azzoni. “A situação do Biden é muito desconfortável, diante de um conflito que era para ter sido sanado por inteligência militar, sem se chegar a um grau de confronto tão grande. Agora é difícil de frear, porque deixou de ser uma disputa regional para ser mundial.”

Era de instabilidade

• Nem tudo está perdido, opinam alguns analistas. Consentino destaca que pela primeira vez se veem vizinhos árabes apoiando Israel contra o Irã, com uma postura inusitada na região que pode mudar o tabuleiro do jogo no Oriente Médio. “Não que eles mudem completamente a rota, mas o evento talvez sirva de correção no futuro.”

• Por outro lado, o risco de contágio é grande. Além de Israel, Europa, EUA e Irã, a instabilidade atinge países como Arábia Saudita, Qatar, Emirados Árabes Unidos e o Iêmen.

Também há riscos no Estreito de Ormuz e no Mar Vermelho.

“E tem ainda o Arzeibaijão, que tenta fazer uma limpeza étnica expulsando a população armênia para ampliar fronteiras. Era zona de influência russa, mas agora aproxima-se de Israel, para onde pode enviar petróleo e gás. E também comprar armas, fazendo parte da intimidação ao Irã, seu vizinho ao sul”, acrescenta Feijó.

A nova era de instabilidade internacional é agravada pelos ataques a países vizinhos (caso da Rússia, de Israel e agora Irã), o que marca uma virada de mesa nas relações diplomáticas, segundo o especialista. Depois da Segunda Guerra Mundial, instituiu-se a ONU e o Conselho de Segurança justamente para estabelecer obrigações entre países, por meio de tratados. “Mas o que se vê hoje é a impunidade por atos que não deveriam ser tolerados.”