Cora Coralina e Carolina de Jesus são dois exemplos notórios de escritoras que publicaram seus primeiros livros depois dos 40 anos. Apesar do início tardio, as duas tiveram reconhecimento.No dia 14 de julho de 1979, Carlos Drummond de Andrade se sentou à escrivaninha de seu escritório no sétimo andar da Rua Conselheiro Lafaiete, 60, em Copacabana, para escrever uma carta. A destinatária era uma poetisa goiana de 89 anos que, quando tinha 76, publicou seu primeiro livro, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965). "Admiro você como alguém que vive em estado de graça com a poesia", exaltou o mineiro.
Dois meses depois, no dia 2 de setembro, Cora Coralina, de sua fazenda em Goiás, retribuiu a gentileza: "Sua palavra, espontânea e amiga, veio como uma vertente de água cristalina para a sede de quem fez longa e dura caminhada", agradece. Tinha início ali uma amizade epistolar que perdurou até a morte de Cora, quase seis anos depois, no dia 10 de abril de 1985, aos 95 anos, vítima de pneumonia.
Cora Coralina nasceu Anna Lins dos Guimarães Peixoto. Apenas dois meses depois de nascida, no distante 20 de agosto de 1889, perdeu o pai, o desembargador Francisco de Paula. Sua mãe, Jacyntha, casou e enviuvou três vezes. A pequena Anna teve uma infância difícil: só estudou até o terceiro ano do antigo primário. Para compensar a pouca escolaridade, sempre leu muito.
Aos 14 anos, inspirada pelo Rio Vermelho, que passa por trás de sua casa, adotou o pseudônimo famoso. Motivo? Havia muita Anna na cidade de Goiás Velho – pudera, a padroeira de lá é Sant'Anna, a avó materna de Jesus. "Tinha medo de que sua glória literária fosse atribuída a outra Ana", explica o sociólogo Clóvis Britto, doutor pela Universidade de Brasília (UnB) e autor da biografia Raízes de Aninha, em parceria com Rita Elisa Seda.
Etarismo, o pior preconceito
Cora viveu em Goiás até 1911, quando se casou com o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo Brêtas e, grávida do primeiro filho, fugiu para São Paulo. Sempre gostou de escrever, mas era proibida de publicar. "Mulher era criada para ter filhos e cuidar da casa", admite a filha de Cora Vicência Bretas Tahan, de 96 anos, a única viva de seis irmãos. Com a morte do marido, em 1934, e a criação dos filhos, retornou à Goiás, em 1956.
Ao longo da vida, sofreu incontáveis preconceitos: mulher, viúva, pobre… Mas, o pior deles foi o etarismo. "Trago comigo todas as idades", eternizou no poema Cora Coralina – Quem é você?, extraído de Meu Livro de Cordel (1976), o segundo dos três publicados em vida. "Sua obra, dizia, era mais relevante que sua idade", afirma Britto.
No dia 27 de dezembro de 1980, Drummond resolveu tornar pública sua admiração. Em sua coluna no Jornal do Brasil, escreveu uma crônica em homenagem a Cora. No texto, chama a colega de "diamante goiano". E reproduz trechos de dois poemas: Todas as Vidas e Minha Infância. "Se há livros comovedores, este é um deles", endossa.
Da fazenda para a favela
A vida de Cora nunca mais foi a mesma. Passou a conciliar a venda de seus doces com a declamação de seus versos. Algo parecido aconteceu com Carolina de Jesus. O jornalista Audálio Dantas apurava uma matéria na favela do Canindé, em São Paulo, quando ouviu um grito de mulher: "Vou ‘botar' vocês no meu livro! ". "Que livro é esse? ", quis saber ele. "O que estou escrevendo sobre a favela", revelou ela.
De volta à redação, Dantas começou a datilografar uma série de reportagens sobre a mineira de Sacramento, a 450 quilômetros de Belo Horizonte, que ganhava a vida como catadora de material reciclável. Uma delas, publicada na edição de 9 de maio de 1958 do jornal Folha da Noite, chamou a atenção dos editores da Francisco Alves.
Quando publicou Quarto de Despejo – Diário de Uma Favelada (1960), rabiscado em mais de 20 cadernos resgatados do lixo, tinha 46 anos. "A favela é o quarto de despejo da sociedade", repetia. "E o que está lá: queima-se ou joga-se fora."
Apesar do início tardio, as duas tiveram reconhecimento. Cora recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Goiás (UFG) e ganhou o prêmio Juca Pato, concedido pela União Brasileira dos Escritores (UBE). "Mais do que uma obra, deixou uma lição", afirma Marlene Velasco, diretora do Museu Casa de Cora Coralina, em Goiás. "Muitos visitantes, em sua maioria idosos, saem daqui encorajados a publicar seus escritos."
Já Carolina mereceu elogios de gigantes como Manuel Bandeira, Clarice Lispector e Ferreira Gullar. Seu título mais famoso, Quarto de Despejo, já foi traduzido para 14 idiomas e publicado em 46 países. "Podia escrever errado, mas falava bem. Era culta até para dar bronca. Chamava a gente de uns nomes estranhos, como pernósticos e famélicos", diverte-se a professora Vera Eunice de Jesus, de 71 anos, filha caçula de Carolina de Jesus.
Suas obras continuam em catálogo: Cora, pela Global Editora, e Carolina, pela Companhia das Letras.
Cedo ou tarde?
Casos como o de Cora Coralina e Carolina de Jesus não são tão raros quanto se imagina. Outro exemplo é o de Zélia Gattai, que lançou Anarquistas Graças a Deus (1979) aos 63 anos. Para Paloma Amado, sua mãe estreou no momento certo. "A idade nunca a impediu de fazer o que desejava: tirou carteira [de motorista] aos 42 anos e furou a orelha aos 71." Ao contrário de Cora, cujo marido a proibia de publicar livros, Zélia sempre foi incentivada por Jorge Amado (1912-2001). "Sempre estimulou mamãe. Tinha muito orgulho dela", garante.
A escritora carioca Lívia Garcia-Roza tinha 55 quando publicou Quarto de Menina (1995). Seu marido, Luiz Alfredo Garcia-Roza (1936-2020), também estreou tardiamente na ficção. Publicou O Silêncio da Chuva (1996), seu primeiro romance policial, aos 60 anos. Não satisfeito, ganhou o Prêmio Jabuti, na categoria romance, aos 61.
Por que tão tarde? Antes de se tornarem escritores, ambos eram psicanalistas. "Nada importa quando desejamos escrever. Nada detém um artista. O que importa é o desejo de expressão. Mantê-lo vivo. O resto é irrelevante", pondera Lívia, hoje com 84 anos e autora de 18 livros.
"Clube do Bolinha"
No Brasil, o machismo não se contenta em proibir mulheres de publicar livros. "O primeiro dever de uma mulher honesta é não ser conhecida", argumentou Olavo Bilac ao saber das pretensões literárias de sua noiva, Amélia de Oliveira. Também dificulta seu acesso a instituições. Fundada em 1897, a Academia Brasileira de Letras só elegeu sua primeira acadêmica, a cearense Rachel de Queiroz, em 1977.
E não foi por falta de candidata que a ABL esperou 80 anos: Amélia de Freitas Beviláqua e Dinah Silveira de Queiroz bem que tentaram. Dinah só conseguiu se eleger na terceira tentativa, em 1980; Amélia, nem isso. "Onde minha mulher não pode entrar, também não entrarei!", protestou seu marido, Clóvis.
Em 1993, Rachel conquistou outro feito inédito: tornou-se a primeira mulher a ganhar o Prêmio Camões, o mais importante da Língua Portuguesa. Depois dela, apenas sete mulheres – duas brasileiras: Lygia Fagundes Telles, em 2005, e Adélia Prado, em 2024 – repetiram a façanha.
"Essa baixa presença feminina reflete a estrutura de uma sociedade patriarcal", afirma a editora Janaína Senna, organizadora da coleção Jovem Leitor, da Nova Fronteira, e doutora em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). "No século 19, muitas escritoras precisaram recorrer a pseudônimos masculinos para terem suas obras publicadas."
Dos atuais 40 imortais da ABL, apenas quatro (10% do total) são mulheres: Ana Maria Machado, Rosiska Darcy, Fernanda Montenegro e Lilia Schwarcz. "Trata-se de um lento processo de reparação, que demanda não apenas reconhecer essas ausências, mas criar condições para que elas deixem de ser a regra", observa Senna.
Preconceito sem fim
Ao contrário de Zélia, colega de fardão da ABL, Rachel não demorou a publicar seu primeiro livro. Tinha 19 anos quando O Quinze (1930) chegou às livrarias. Muitos escritores, porém, não acreditaram que uma mulher pudesse escrever um romance daqueles. Graciliano Ramos foi um deles. "Seria realmente de uma mulher? Não acreditei. É pilhéria! Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado", desdenhou o alagoano.
"Mesmo quando uma mulher era reconhecida, seu reconhecimento vinha condicionado a uma escrita que imitasse ou se aproximasse do modelo masculino", observa Anna Faedrich, doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professora adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Isso revela que o problema não era – nunca foi – ausência de mulheres com talento, mas sim falta de disposição da crítica e das instituições para reconhecê-las como legítimas representantes do campo literário."
Barrada na academia
O mais simbólico caso de "silenciamento" na ABL é o de Júlia Lopes de Almeida. Embora seja uma das primeiras romancistas do Brasil, não conseguiu ocupar nenhuma de suas 40 cadeiras. E nem adiantou o jornalista Lúcio de Mendonça sugerir que seu nome fosse incluído no quadro de fundadores. Os demais acadêmicos rejeitaram a proposta. Pior: aprovaram a indicação do nome do marido dela, o português Filinto de Almeida, mas recusaram o dela. "Não era eu quem devia estar lá", lamentou Filinto em entrevista a João do Rio, em 1905. "Era ela."
"A exclusão de Júlia da ABL não pode ser atribuída à falta de talento. Foi uma das mais completas intelectuais de sua geração. O que faltava não era qualidade, mas reconhecimento de que uma mulher podia ocupar o mesmo lugar que seus colegas homens", afirma Faedrich, organizadora do livro Júlia do Rio: Crônicas da Belle Époque Carioca. "O que está em jogo não é o valor estético em si, mas as estruturas de poder que decidem o que será lembrado e o que será esquecido. Neste cenário, o machismo institucional da ABL foi determinante."
Júlia Lopes de Almeida só conseguiu ingressar na ABL em 2010 – 76 anos depois de sua morte. Seu neto, Cláudio Lopes de Almeida, doou o arquivo que pertencia à avó para a instituição.