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Há um século, em 13 de fevereiro, o dramaturgo Graça Aranha subia ao palco do Theatro Municipal, em São Paulo, para apresentar a conferência A Emoção Estética da Arte Moderna. “Para muitos de vós, o curioso e sugestivo evento que gloriosamente inauguramos hoje é uma aglomeração de horrores”, proclamou, na palestra que abriu a Semana de 1922. Apesar de ser um marco na cultura brasileira, não foi a primeira mostra do genêro no País. Exposição de Pintura Moderna, de Anita Malfatti, já havia surpreendido o País em 1917.

A Semana de 1922 contou com apenas quatro mulheres: as pintoras Anita Malfatti e Zina Aita, a artista têxtil Regina Graz e a pianista Guiomar Novaes. O baixo número, porém, não impediu a grande influência que elas tiveram sobre o modernismo brasileiro – sem contar as que ingressaram mais tarde no movimento. A pintora Tarsila do Amaral, que estava em Paris na época do evento e voltou quatro meses depois, logo se tornou um de seus principais nomes; a escritora e ativista Pagu só ingressaria na turma em 1928, mas seu ativismo é referência para o movimento feminista até hoje.

PIONEIRA Autorretrato, de Anita Malfatti: Semana de 1922 foi reação de jovens artistas contra as críticas
de Monteiro Lobato à pintora (Crédito:Divulgação)

É possível dizer que a própria Semana de 1922 não existiria sem a exposição de Anita Malfatti em 1917 – os tais “horrores”, que Graça Aranha ironizaria cinco anos mais tarde. Foi a primeira vez que os brasileiros viam obras cubistas e pós-impressionistas influenciadas pela vanguarda europeia. Os conservadores ficaram chocados: o escritor Monteiro Lobato detonou a pintora no texto Paranóia ou mistificação?, publicado na imprensa. A crítica teve forte impacto: das 53 obras expostas, foram vendidas apenas oito – e seis delas acabaram sendo devolvidas logo depois. Os dois quadros negociados haviam sido comprados por artistas que se tornariam os melhores amigos da artista: Mário de Andrade e Oswald de Andrade. “Anita só aguentou a pressão porque era uma mulher de muita personalidade”, afirma Luiz Francisco Pini, seu sobrinho-neto. “Estava acostumada a superar problemas desde a infância. Aprendeu até a pintar com a mão esquerda porque tinha um problema na mão direita. Era uma mulher muito determinada.”

Pagu teve mais importância como ativista. Publicou
seu primeiro livro somente em 1933 (Crédito:Divulgação)

Descendente de alemães, Anita estudou pintura em Berlim e Dresden por incentivo do tio, Jorge Krug, arquiteto que trabalhava no famoso escritório de Ramos de Azevedo, responsável por marcantes obras em São Paulo. Na viagem, teve contato com o Expressionismo Alemão, estética que influenciaria seu estilo. Em 1915, deixou o país rumo a Nova York, nos EUA, para fugir da Primeira Guerra. Voltaria ao Brasil dois anos depois, para a exposição de 1917.

“O poeta Menotti del Picchia a considerava pioneira da ‘revolução’ de São Paulo”, afirma Paulo Villella, do Instituto Anita Malfatti. “Ela foi a primeira a misturar as técnicas europeias com os temas brasileiros, por meio do uso de cores fortes e elementos tropicais, como frutas.”

Em 2018 Anita passou a frequentar o ateliê de Pedro Alexandrino, onde conheceu e ficou amiga de uma de suas alunas mais brilhantes: Tarsila do Amaral. A jovem artista deslumbrou-se com o estilo original de Anita, que ia muito além das naturezas mortas que Alexandrino ensinava em seu estúdio. Influenciada pela amiga – que mais tarde se tornaria rival –, foi a vez de Tarsila ir estudar em Paris. Voltou ao País apenas em junho de 1922, quando se apaixonou pelo movimento modernista e por um de seus líderes, Oswald de Andrade. Os dois se casaram em 1926, formando o “Tarsiwald”, um dos primeiros casal de celebridades no país.

Oswald também se envolveu com outra mulher essencial para o modernismo: Pagu. Patrícia Galvão tinha 18 anos quando se aproximou dos modernistas e conquistou a turma com os ideais inspirados pela Revolução Russa. “Tarsila adotou Pagu”, afirma Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta da pintora. “Ela era linda e muito simples, não tinha nem roupas para frequentar as festas. Tarsila emprestava tudo.” A importância de Pagu, no entanto, foi mais política que artística. “Era uma mulher muito livre, uma intelectual. Só foi se tornar escritora mais tarde.” Essa liberdade trouxe consequências: teve um caso com Oswald e engravidou. Para evitar o escândalo, ele a obrigou a se casar com Belizário, assistente de Tarsila, sem que a esposa soubesse de nada. Na lua de mel, porém, Oswald viajou para a Bahia, dispensou o funcionário e passou um mês com Pagu. Na volta a São Paulo, Tarsila pediu a separação. Pagu e Oswald casaram-se em 1930.

Hoje os quadros de Anita e de Tarsila valem milhões de dólares, mas a primeira modernista brasileira a ser reconhecida no exterior foi a pianista Guiomar Novaes. Admiradora de Frédéric Chopin, ficou fascinada com a música de Heitor Villa-Lobos na Semana de 1922 e tornou-se sua principal intérprete em concertos internacionais. Hoje, cem anos depois, os “horrores” das modernistas brasileiras conquistaram o mundo.

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Artistas atuais foram influenciadas pelas modernistas

Pioneiras como Tarsila do Amaral e Anita Malfatti abriram o caminho para as gerações de artistas femininas que vieram depois, das escultoras Lygia Clark (1920-1988) e Lygia Pape (1927-2004) a nomes contemporâneos, como Adriana Varejão (foto) e Beatriz Milhazes. Ambas fazem sucesso no mercado internacional: a tela “Parede com incisões à La Fontana II”, de Adriana Varejão, é a obra de um brasileiro vivo mais cara da história: foi leiloada na Christie’s, em Londres, por R$ 2,72 milhões. Beatriz Milhazes também já expôs em mostras internacionais nos EUA e Europa, e seus trabalhos integram os acervos dos museus MoMA, Guggenheim e Metropolitan, em Nova York.

Destaques da agenda

INTERNACIONAL Guiomar Novaes: a maior intérprete da obra de Villa-Lobos (Crédito:Divulgação)

Acesse a programação completa no site  www.agendatarsila.com.br

• MIS Experience: Museu da Imagem e do Som terá exposição imersiva sobre Cândido Portinari
• Theatro Municipal será palco de shows, concertos e teatro até 17/2
• Exposição Modernismo – Destaques do Acervo (Pinacoteca)
• Pilares de 22: caricaturas no Memorial da América Latina
• Victor Brecheret é homenageado com a mostra Ateliê do Brecheret no Museu Catavento

Carta inédita da Tarsila do Amaral para Anita Malfatti

Paris – 26 outubro de 1920

Anita muito querida: estou em falta contigo. Há mais de 15 dias estou para escrever-te, já recebi duas iteressantíssimmas cartas tuas. Estou curiosa pos saber como é o grande quadro da tua exposição; já me falaste duas vezes nele, mas não me disseste qual o assunto. Pensei que no dia 15 de setembro, fizesses a tua exposição: pedi intensamente a Deus por ti e estou certa de que fostes feliz e esta sendo agora. Pela tua carta, creio que abriste tua exposição em fins de setembro ou princípo de outubro. Nada mais soube do Valdemar. Já escrevi pedindo notícias dele, mas me precece que mamãe se esquece de enviá-las. Estou te escrevendo daqui da Academia Julian. Venho todas as manhãs. Estou trabalhando num grande grupo de umas 50 alunas. Está me parecendo que muitos são os chamados mas poucos são os eleitos. Não vejo uma aluna forte. Algumas trabalham bem, mas falta aquele aquilo que nos impressiona. Já estive no “Grand Palais”, no salão de outono: olha Anita, quase tudo tende para o cubismo e futurismo. Muita natureza morta, mas daquelas ousadas em cores gritantes e forma descuidada. Muita paisagem impressionista, outras dadaístas. Conheces certamente o dadaismo. Eu porém, vim a conhecê-lo agora.

Esta nova escola da palavra “dadá” que em francês significa, na linguagem infantil, “cavalo”, tem por fim pintar com grande simplicidade e mesmo ingenuidade. Assim está no salão um quadro onde se veem escritas as palavras: “ciel, terre, mer” nos lugares correspondentes. Picasso exibe uma grande tela “La famille”: um piano de cauda, um moço tocando, uma moça ao lado e no primeiro plano um homem uma cadeira de balanço. Fiquei maravilhada com os quadros de um artista inglês O’Conor (creio que é assim que se escreve): 3 naturezas mortas, 2 figuras. Bom desenho, cores violentíssimas. Maurice Denis expões um grande quadro decorativo – Manhã de Sol – amazonas provavelmente no Bois de Bologne: um cântico de cores! Este salão de outono é bastante livre: ouvi dizer que é uma fusão que fizeram com os independentes. Ainda não vi tudo. Deverei voltar. Olha Anita, depois de ter visto muito essa pintura cheia de imaginação, não suporto mais as coisas baseadas no bom senso e muito ponderadas. Os quadros dessa natureza ficaram pobres no salão. Também não estou de acordo com o cubismo exagerado e o futurismo. O público em geral ainda não aceita aqui essas coisas. Estive muito tempo diante dos quadros mais extravagantes para ouvir os comentários: “C’est um mystére! Que’est-ce que c’est cela? – L”aertiste n’em sait rien… etc”… como está vendo, a arte nova está vencendo. Fui a uma casa que compra e vende quadros…

modernos e futuristas. Há grande movimento na casa. O salão de julho o mesmo é mais severo que este, contudo estou certa de que tuas telas teriam prefeitamente aceitação, pois é essa arte copreendida aqui. As tuas pinturas nunca foram futuristas como queriam dizer os poucos aí. Não compreenderam o seu talento e nada mais. Trata de arranjar as malas e dize-me e que vapor vens. Tenho trabalhado também à tarde num curso de “croquis”. Acho aquilo iteressatíssimo. Agora é que vou começar a levar a vida com mais método. Estou morando bem no centro de Paris. O Louvre a dois passos, o mesmo com o “metrô” que e facilita para ir a todas as direções. Do ponto em que estou, nada fica longe. Tenho visto o Souza Lima. Não imaginas a alegria quando o ví pela primeira vez! Bom patricio, um amigo nosso, parecia-me um pedaço do meu Brasil. Olha Anita, ainda sofro muito com as saudades. O Souza Lima que já está aqui há um ano, disse-me que passou também por tudo isso mas que agora está perfeitamente acostumado aspesar das saudades. Fomos há poucos dias dar um passeio de aeroplano sobre Paris. Tiramos o retrato antes da ascesão encapotados em mantos de pele, óculos e um gorro. Mas ainda não recebemos as fotografias e está me parecendo que não mandarão. Pagamos 50 francos cada um por um passeio de 15 minutos. Quando se está bem…

no alto e que o aeroplano faz um pequeno movimento para descer, a sacenção não é muito agradável. Não tivemos medo, mas também não tencionamos bisar o passeio. Afinal de contas, um pequenio desarranjo na hélice acabaria com ossas preciosas existências. A terra é tão boa, amemo-la, caminhemos sobre ela sem aquele vento terrível das alturas, apenas remediado pelos capotes e pelo gorro de péles, envolvendo a cabeça toda. – Agora estou te escrevendo do meu quarto. Fui hoje ao consulado. Lá econtrei uma carta de mamãe. Dizia-me que telefonas sempre sabendo se tinha recebido notícias minhas. Como és boa minha Anita! Não imaginas a falta que me fazes aqui. Ainda não vi Helena e Margarida. Manda-me sempre notícias da irmandade. Pobre irmandade! Cada vez se desagregando mais! Quem sabe se for síntese o destio a consolidará de novo e Paris! – Qualquer dia desta semana irei visitar uma escola moderna de pintura por onde já passei duas vezes, tendo a encontrada fechada. Creio que se abre só pela manhã. Na escola onde trabalho em croquis, dá lições de 3 em 3 semanas o nosso Lucien Simin. Olha Anita, acho Simon realmente um grande artista. O desenho dele é de uma franqueza admirável e de uma força que impressiona, mas o colorido quase sempre é terroso. Ví no “Petit Palais” divesas telas dele. Tenho feito na academis Julian estudos de nú, por enquanto só desehos mas logo vou começar a pintar. Agora é que vou começar a trabalhar seriamente somente em academias e nas férias…

de julho quero ver se encontro um “atelie” nas condições do Milton também poder ficar comigo. Está muito contente com a notícia da vinda dele para cá mas temo ainda que não seja levada a efeito. Estou lendo um livro que me tem divertido: “Pittura, scultura futurista” de Boccione. Comprei por curiosidade para ler em que se baseiam os futristas. Estou em pleno desacordo com o autor: “Beethoven, Michelangelo, Dante, si rioltano lo stomaco” E o mesmo vai dizendo de Rodin, Manet, Cézanne, Wagner, Debussy, D’Anunzio, Oscar Wilde etc etc enfim todos os que não compreederam o dinamismo plástico, tudo numa liguagem violentíssima, cheia de adjetivos de idiota e estupido para baixo. Entre as reproduções dos quadros, no fim do livro há uma de Saverini a danza del pan-pan” que é explêndida e outra de Russolo: ‘Riassunto plastico de movimeti di uma donna” que também não fica atraz. – Falando há pouco em “ci rivoltano lo stomaco” lembrei-me do Nio com as sua alusões a mulheres feias. Quando ele for aí, diga-lhe que vou escrever logo e que espero que ele esteja agora melhor da bronquite; que vá para a fazenda durante as férias, onde poderá passar bem melhor. Papai e mamãe já lhe ofereceram a casa. – O Nio escreveu-me contando que ele não teve grande resultado a eposição. Gostaste muito dos trabalhos dele? Estou agora a espera de notícias da tua exposição. Bem minha querida Anita, vou terminar…

esta que já está com aspecto de iterminável. Saudades da D. Beth, a Georgina e o Willy e a todos os teus. Não sei mais o númmero da casa da Irene. Envio saudades a ela também. Adeus querida Anita, quero-te muito bem, abraço-te com toda ammizade.

Tarsila

27 – outubro

Fui há poucos dias pela primeira vez em emcompanhia do Souza Lima, à um explêndido concerto sinfonico no Trocadero, onde, com seus 86 anos, Saint-Saëns se apresentou em publico, tocando ao piano acopanhado de orquestra, peças belíssimas dele. Admiramos-lhe a boa memória (tocou de cór) e a execução. Foi uma bela tarde! Ouvimos também Beethoven e Cezar Frank – Souza Lima progride extraordinariamente. Está fazendo só estudos de técnica. Largou de tudo quanto tocava. – Saudades a Luison e aos fragmentos da irmandade, que ainda se encontram por aí.