Escrever sobre “Um Defeito de Cor”, o livro de Ana Maria Gonçalves, é um grande ato de ousadia. Ousadia essa que vou me autorizar a ter, porque apesar de amar a escrita, me considero melhor leitora do que escritora. Ganhei o livro de quase mil páginas em 2019 através de um pedido na Winnieteca, um projeto da Winnie Bueno de distribuição de livros no Twitter. Na época, o livro custava mais de 100 reais e eu não tinha condições de adquirir, mas guardava uma vontade enorme de conhecer aquela história. Minha vontade de saber mais sobre a história negra do Brasil vem da infância, por volta dos dez anos de idade, quando nas aulas da escola aprendi sobre o período de chegada dos africanos ao Brasil, através da escravização europeia.

Lançado em 2006, “Um Defeito de Cor” dialogou diretamente com essa menina que queria saber mais sobre si mesma, sobre sua história familiar, mas não encontrava essas informações em lugar nenhum. Tudo que eu sabia sobre os negros tinha uma associação à tragédia, pobreza e sofrimento. Fui criada frequentando quadras de Escolas de Samba, locais dos mais sofisticados fazeres artísticos do Brasil. Onde se produz música, poesia, artes plásticas, moda, tudo junto embalado por histórias que os livros não contam. De alguma forma intuitiva, eu sempre soube que havia muito mais do que escravidão na nossa história.

Tentei ler em 2019. No primeiro capítulo há a narrativa de um estupro e eu, que fui vítima de violências sexuais, não consegui continuar. Em janeiro de 2023, resolvi que iria em frente na leitura e não me arrependi. “Um Defeito de Cor” narra a história de Kehinde, uma menina de oito anos que é sequestrada no atual Benin e vive no Brasil como escravizada. Conquista sua liberdade, têm filhos (sendo um deles o advogado abolicionista Luís Gama), viaja o país inteiro, volta para a África, fica rica e conta sua história em primeira pessoa através de uma carta para seu filho, que fora vendido como escravizado pelo pai, um homem branco viciado em jogo de azar.

Como descreve a própria autora, o livro é um amálgama das histórias de muitas mulheres negras que viveram no século XIX no Brasil. Quituteiras, rezadeiras, mulheres inteligentes e cheias de talentos, falantes de três, quatro línguas fluentes, que chegaram ao país ainda meninas e fizeram fortunas como comerciantes, ajudando a comprar a liberdade de milhares de outros negros escravizados.

O livro preenche uma lacuna gigantesca que existe no imaginário brasileiro sobre quem foram as pessoas africanas que chegaram aqui e de quem descendemos, como eram suas vidas cotidianas, quais eram seus sonhos e medos. Toda a humanidade que nos é retirada no processo histórico, nos transformando em seres semi-moventes, como eram consideradas as pessoas negras da época. Seres sem alma, sem direito à identidade, à humanidade. “Um Defeito de Cor” nos devolve as emoções do trajeto de travessia do Atlântico que nos trouxe até aqui, nos conduz a partir do ponto de vista de Kehinde, conhecida como Luísa Mahin, a uma viagem que tem como destino a narrativa de um Brasil que a historiografia não contou. Uma obra que proporciona a oportunidade de reconexão de um país que odeia suas raízes africanas com verdades impronunciadas na tradição literária racista e elitista – em pleno século 21, a autora do livro seria a oitava mulher negra a publicar um romance por aqui.

Ana Maria Gonçalves é uma escritora visionária. Em 2006, o debate sobre raça ainda não ocupava as principais manchetes, não era um assunto com tanta visibilidade nem prioridade no mercado editorial brasileiro. Se hoje temos pelo menos o dobro de mulheres negras romancistas publicadas, muito devemos à Ana e sua Kehinde. Este livro, que é a carta de uma mãe separada de seu filho, é uma brilhante metáfora da violência brutal que nos arrancou do colo de nossa mãe África. Sua escrita foi uma semente lançada para o futuro e que hoje floresce de forma profunda na nossa cultura. Prova disso é o enredo de 2024 da Portela, que narra a carta do filho que recebeu os escritos da mãe e devolve seu afeto em forma de samba e poesia.

Tive o prazer de sentar em uma mesa de debates com a autora no mês de julho e ouvir que nós não sabemos quem somos, nós construímos identidade contando histórias. A saga de Kehinde é uma pedra fundamental na construção da identidade brasileira, é uma leitura necessária e obrigatória para entender as diversas vozes que constroem o discurso sobre o que é e sobre o que pode ser esse país.

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.