Desde que surgiu, em 2012, a Lei de Cotas vem levantando polêmicas em rodas de conversa. Discussões iniciadas, na grande maioria das vezes, por pessoas brancas, alegando que estariam sendo prejudicadas, ou que as cotas não deveriam levar em conta a cor de pele, e sim a questão social e o histórico escolar. A aprovação da continuidade da Lei, em 9 de agosto passado, traz uma nova oportunidade para refletirmos sobre o tema.
O antigo regramento foi revisitado, passando a conjugar recortes também sociais, ligados à renda e à formação escolar, além de critérios de concorrência às vagas. A política de ação afirmativa deverá ser objeto de acompanhamento anual e revisão a cada dez anos.
Para muito além dos lugares reservados agora para pretos, pardos, indígenas e quilombolas, e também para pessoas com deficiência e alunos de escola pública, estamos diante de verdadeira política de reparação histórica por séculos de exclusão, especialmente de negros, de todo o ambiente escolar.
Escravos não podiam estudar. Negros libertos, quando não impedidos, ouviam sistematicamente o mesmo questionamento:  “estudar para quê?” E na maioria das vezes, sem encontrar respostas para essa pergunta, seguiam longe dos bancos escolares.
A consequência a médio e longo prazo? Ausência de representatividade em lugares de tomada de decisões, de chefia, de destaque, e até mesmo de consumo. Em termos muito utilizados nos dias atuais, ausência de protagonismo.
Experimente tirar um minutinho para puxar na memória: quantos negros existem em cargos de chefia onde você trabalha? E quantos estavam sentados como consumidores no bar do seu happy hour de ontem? Por quantos médicos negros você já foi atendido? Quantos engenheiros negros você conhece? E advogados? E juízes?
Ainda sem conseguirmos responder muitas dessas questões, ou nos envergonhando ao pensar sobre cada uma delas, seguimos repetindo automaticamente que “representatividade importa”. Importa sim. Importa muito.
Esse é um dos efeitos das cotas: elas colocam pessoas negras em lugar de destaque, de protagonismo. Lugares que são admirados por crianças, para as quais a mensagem que fica é: “ele é igual a mim e está ali, o que significa que eu também posso ocupar esse lugar”. Funciona também na desconstrução da tão reforçada imagem inversa. Aquela que perdurou por anos, décadas, séculos, segundo a qual às pessoas negras eram reservados os lugares de subserviência, prestação de serviços, e as representações caricatas e estigmatizadas.
Cotas e outras políticas de ação afirmativa vem desempenhar papel extremamente importante na mudança dessa realidade. Mas é pouco. O trabalho precisa vir antes. Desde a primeira infância. Desde sempre. O tempo todo.
O que as cotas ensinam sobre lugares a serem ocupados, os brinquedos, os livros, filmes e personagens negros fazem em relação ao pertencimento e ao reforço da autoestima, de forma natural e desde muito cedo.
Meninas aprendem que não precisam ser loiras de olho azul, magras e longilíneas, quando brincam com bonecas que se parecem com elas, quando veem princesas e heroínas negras, com cabelos afro. Meninos confiam que podem ser super-heróis e protagonistas da própria história ao se verem representados pelo homem-aranha, por exemplo, que atrás da máscara não precisa ser branco, como nos foi ensinado.
Meu coração vira cambalhotas de alegria a cada “olha, mamãe, um protagonista negro!”, que eu escuto do meu filho, ao se ver representado, onde quer que seja.
#representatividadeimporta fica lindo nas redes sociais, mas ainda mais bonito fazendo brilhar os olhos de meninos e meninas que, a partir de brinquedos e cotas, podem ter a oportunidade de não reviver a invisibilidade experimentada pelos que vieram antes deles.
* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.