Ao escrever este texto, meu estômago revira. Falar de sexualidade é difícil porque as minhas primeiras memórias sobre sexo começam com um abuso. Faço parte da triste estatística que nos informa que uma, em cada três crianças, é abusada sexualmente até os 18 anos de idade. E assim como a maioria dos casos, 76% aqui no Brasil, também fui violentada por um parente, meu primo Leonardo. Vou contar um pouco da história e fazer um alerta para que todas nós possamos nos tornar mais atentas.

Quando eu estava com cerca de 12 anos de idade, minha mãe teve uma alta demanda de trabalho e precisou de suporte para cuidar de mim. Meu pai não assumiu a responsabilidade, os demais familiares também não, e a melhor solução que ela encontrou foi trazer uma pessoa muito querida para cuidar de mim, meu primo Leonardo. Tenho uma foto dele aos oito anos comigo no colo, então eu estava com quatro meses de idade. Leonardo era aquela pessoa engraçada, que fazia todo mundo rir. Era muito inteligente, e apesar de vir de uma família humilde estudou, se esforçou e veio de Salvador para o Rio, para cursar faculdade e cuidar das coisas da casa, na ausência da minha mãe. Dentre “as coisas” para cuidar estava eu, uma garota negra e franzina de 12 anos. Além dele, a Eliane trabalhava como doméstica e passava o dia por lá. 

Leonardo não era um homem desconhecido em uma rua escura. Ele era meu primo preferido, que me carregou no colo e quem eu conhecia desde sempre, quando passava férias escolares na casa da minha família na periferia de Salvador. Depois de algum tempo, essa pessoa em quem eu confiava passou a fazer algumas “brincadeiras” estranhas, como correr atrás de mim pela casa e segurar meus braços com uma força desproporcional. Depois passou a abusar sexualmente de mim, mesmo quando havia outras pessoas em casa. Eu não entendia o que estava acontecendo, não sabia o que era sexo e fui sentindo cada vez mais raiva. Gostava de ser abraçada por ele, porque não recebia muitos abraços. Sentia coisas boas por ele e logo não conseguia mais lidar com a confusão que tudo aquilo foi causando. Só entendi que era errado porque um dia ele ameaçou me desmentir, caso eu contasse para alguém. Leonardo agiu assim por cerca de um ano, quando comecei a fugir de casa, me recusar a falar com ele e entrar num buraco emocional muito profundo de onde uma parte de mim nunca mais saiu. 

Depois que ele foi embora e minha família descobriu o que aconteceu, nada mudou. Leonardo continuou sendo o primo querido que contava as melhores piadas e todo mundo amava. Ainda convivi com ele forçadamente por anos. Até que resolvi romper contato com esta parte da família e nunca mais o vi. Tive notícias de que ele poderia estar repetindo o mesmo comportamento com outras crianças. Quando decidi que denunciaria o crime, mesmo sem testemunhas, fui ameaçada por um familiar, que prometeu pagar advogados para ele, caso eu optasse por seguir em frente. E então desisti. Anos depois, quando falei publicamente pela primeira vez sobre essa história, fui perseguida. Descobri que várias pessoas na minha família também foram abusadas na infância. Muitas só se lembraram quando eu contei o que havia acontecido comigo. Algumas foram justamente as pessoas que ficaram em silêncio quando souberam que eu tinha sido abusada, não me defenderam. E provavelmente não me defenderam porque nunca conseguiram se defender e também não foram defendidas, é um ciclo.

Eu gostaria que essa história fosse uma ficção, mas é a minha história. Falar sobre sexualidade é muito difícil dentro do contexto familiar, mas é necessário, mais do que nunca. Se eu soubesse o que é consentimento, quais áreas do meu corpo outras pessoas não podem me tocar sem autorização, talvez a minha história fosse diferente. Os efeitos de um abuso e da negligência familiar destroem as vidas das crianças. Desenvolvi depressão, psoríase e ainda hoje luto com as memórias da violência. Se eu soubesse a diferença entre sexo e estupro, o episódio que vivi anos mais tarde, ao ser estuprada por um namorado, em quem eu também confiava e que me conhecia desde a infância, poderia ter terminado com uma denúncia. Mas eu não sabia que quando alguém, mesmo sendo o cônjuge, transa com alguém inconsciente e bêbada, também se trata de estupro. E assim ficou tudo por isso mesmo. 

Eu não sabia de nada disso, mas agora sei. E desde pequena comecei a ensinar minha filha que as pessoas precisam pedir para encostar no seu corpo, peço licença para trocar roupas e ensino que ela não precisa abraçar alguém, caso não queira. Falo os nomes e explico que partes do corpo outras pessoas não devem tocar. Também digo que ninguém pode fazê-la sentir-se mal e que, caso isso aconteça, ela deve se afastar. Não sou só eu, mãe, a responsável por educar a minha filha contra as violências sexuais. Todas as pessoas que convivem com crianças precisam estar atentas a mudanças de comportamento, queda no rendimento escolar, comportamentos de automutilação, marcas pelo corpo ou uso de linguagem sexual de maneira inadequada para a idade. Conversar sobre sexualidade de forma saudável pode prevenir as violências.

Hoje tenho cada vez mais curado minha sexualidade, recuperando o poder do meu corpo, que é a maior fonte de prazer e felicidade na vida. Todos os dias curo mais um pedaço da ferida que quase matou a minha alma, falar sobre o abuso e alertar as pessoas sobre como ele acontece faz parte da minha cura. O monstro da violência sexual diminui de tamanho e perde poder quando falamos sobre ele de maneira direta, em plena luz do dia. Trazer as feridas ao sol também cura. 

Se você souber de um caso de violência sexual contra crianças e adolescentes, denuncie! Disque 100. É anônimo e gratuito.

 

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.