A análise das políticas públicas existentes no Brasil é essencial para o fim da escravidão contemporânea envolvendo crianças e adolescentes, mas é importante também compreender sua estreita ligação com causas materiais que precisam ser enfrentadas. A redução significativa da exploração do trabalho infantil entre 2004 e 2015 demonstra o fato, já que as políticas direcionadas para o seu enfrentamento foram implementadas num contexto de crescimento econômico, atrelado ao desenvolvimento social, sobretudo ao fortalecimento dos programas de assistência social e educação, e à melhoria das condições gerais de trabalho, inclusive com o aumento da formalização e a elevação real do salário mínimo. 

O incremento do PIB e a melhor estruturação do mercado de trabalho, no período mencionado acima, impactaram sobretudo os aspectos constitutivos do trabalho precoce, na medida em que houve diminuição da pobreza familiar e crescimento significativo de postos formais de trabalho, alcançando os trabalhadores jovens. 

O relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Covid-19 and Child Labor: A Time of Crisis, a Time to Act, publicado em junho de 2020, estima a relação de causalidade direta entre a elevação da pobreza e o trabalho infantil, visto como uma das alternativas utilizadas para o aumento da renda familiar. A pesquisa apresenta ainda um índice de elasticidade entre essas duas variáveis, avaliado em 0,7%. Resguardadas as variações nas realidades nacionais, o incremento da pobreza em 1% resulta no crescimento estimado de 0,7% sobre o total de crianças e adolescentes em situação de trabalho.

 

500 mil vítimas

O tráfico de crianças e adolescentes para fins de trabalho escravo ainda sobrevive no Brasil. O trabalho infantil também é fruto, portanto, da ação de criminosos que transformam pessoas em mercadorias de consumo. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Libertas, o Brasil ocupa o segundo lugar em um triste ranking: o de exploração sexual de crianças e adolescentes, estando apenas atrás da Tailândia. São 500 mil vítimas.

Os dados mostram que, todos os dias, 320 crianças e adolescentes são explorados sexualmente no Brasil –  esse número pode ser ainda maior, no entanto, já que apenas sete em cada 100 casos são denunciados. O estudo ainda esclarece que 75% das vítimas são meninas e, em sua maioria, negras. Elas são vítimas de espancamentos, estupros, estão sujeitas ao vício em álcool e drogas, bem como vulneráveis à Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs). 

 

 A Pesquisa de prevalência – Holofotes sobre as vítimas invisíveis, realizada pelo The Freedom Fund no estado de Pernambuco, indica que:

  • O Estado de Pernambuco registrou 350 casos, só no último ano, de Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes (ESCCA). Mais de 20.000 adolescentes  estiveram envolvidas neste tipo de exploração  recentemente. 
  • Existe clara subnotificação sobre o tema, o que significa dizer que não temos a dimensão ainda maior do problema. 
  • 51,6% destas adolescentes vivem em famílias com renda de menos de R$1.000,00.
  • 39,3% delas vivenciaram episódios frequentes de violência doméstica.
  • 78,6% estavam na escola quando foram envolvidas numa situação de exploração desta natureza pela primeira vez.
  • Meninas negras são maioria, demonstrando a faceta do racismo também quando falamos deste tema.
  • 81,4% estiveram envolvidas por razoes econômicas, 69,1% sofreram agressão policial e 97,2% foram presas estando em situação de ESCCA. 

 

O trabalho infantil é um fenômeno cuja intensidade e manifestação varia regional e historicamente, conforme a estrutura produtiva e os paradigmas culturais vigentes. Apesar das diferenças na evolução, formas de ocupação e participação em relação ao trabalho total, há dois aspectos comuns subjacentes à ocorrência e à persistência do trabalho infantil ao longo do tempo, relacionados à maior vulnerabilidade dos grupos familiares e à sua percepção cultural como um processo natural da organização social.

No Brasil, a força de trabalho de crianças e adolescentes, escravizados e/ou pobres, foi incorporada ao processo produtivo dos ciclos extrativistas e das monoculturas. A sua utilização intensificou-se durante a primeira etapa da industrialização no país, caracterizada por processos produtivos mais simples, como por exemplo a indústria de bens de consumo, alimentos e bebidas. A mão de obra infantil, mais barata e suscetível à subordinação, foi extensamente utilizada durante esse período, que começou no final de 1800 e se estendeu até as primeiras três décadas de 1900.

A pobreza familiar não gera necessariamente o trabalho infantil, mas a maioria das crianças e adolescentes que são exploradas pertence a núcleos familiares em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Nosso desafio é a continuidade e efetividade de políticas públicas de combate ao trabalho infantil para a reparação de danos. 

A sensibilização da sociedade sobre o trabalho infantil associado à escravidão contemporânea vem crescendo, percebido como problema social a ser eliminado, incompatível com o grau de desenvolvimento socioeconômico que já alcançamos. Vale ressaltar a mobilização e vigilância dos fóruns da sociedade civil organizada, as políticas que se mostraram bem-sucedidas, como os programas de transferência de renda articulados com a educação e cuidados básicos de saúde, a expertise e a resiliência institucional alcançada – tendo em vista as atuações dos grupos especializados na Inspeção do Trabalho, no Ministério Público do Trabalho e na Magistratura do Trabalho.

Dispomos de conhecimento teórico e prático, adquiridos e demonstrados nos últimos 25 anos, para avançarmos no combate ao trabalho precoce no país. Percebe-se que a lógica subjacente ao processo de combate ao trabalho precoce, cujos resultados são positivos apesar das dificuldades colocadas, pode também subsidiar a formulação de outras políticas de redução das desigualdades e de desenvolvimento social, mediante a articulação de três pilares: o enfrentamento das causas materiais, a vigilância institucional e a ressignificação cultural.

 

Como denunciar?

Uma das formas de denunciar essa grave violação de direitos é por meio do Disque 100.  Há sinais que evidenciam a necessidade de interferência na situação, cabendo à sociedade como um todo a denúncia e proteção de nossas crianças e adolescentes.

Disponível em todo o território nacional, o Disque 100 visa encaminhar as denúncias aos órgãos competentes, além de fornecer orientações sobre os serviços e redes de atendimento e proteção nos estados e municípios.