Sim, ela tinha apenas 17 anos, quando seus pais a enviaram para Europa, ou melhor, para Paris. Seguindo o velho costume das famílias de classe alta de São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais brasileiras, aquele seria um tempo sabático na Europa ou Estados Unidos.

Eugenia visitou museus, foi aos teatros e viu maravilhosos espetáculos de balé. Mas não esqueceu de continuar fazendo o que já fazia em São Paulo, ir diversas vezes até a periferia de Paris.  Era assim em Roma, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador, Paris, tudo em todos os lugares, a periferia lhe parecia sempre igual.

A biologia era sua matéria preferida e dizia muito para ela. Biologia, a ciência que estuda a vida, nas suas diversas formas e níveis, seguia sendo sua paixão. 

Mas as dúvidas na escolha da profissão sempre a atormentavam, e agora mais ainda. Alguma causa dentro dela começou a crescer. O ar estava imóvel, quieto. Será que conseguiria mudar de vida? O que fazer? 

Considerou organizar com as amigas do colégio uma Organização Não Governamental. Sabia de muitas ONGs que ficavam batendo nas mesmas teclas, fazendo doações para famílias, para crianças, para idosos necessitados. Mas seria sempre isso, doar, doar, um sem fim de doar?

Também se perguntava: será que quando estou doando roupa, ou comida, não estimulo a permanência deles na situação atual? Nada muda, nada acontece. Mata-se a fome, veste-se a roupa, e daí continua a estagnação?  

Dúvidas e mais dúvidas. Cada vez mais perguntas, para as quais não conseguia encontrar as respostas. 

Eugenia não se conformava. No seu entorno estava a periferia bem ali, nas calçadas, nas praças, nos refugiados. 

Mas também se perguntava: o que posso fazer? Nunca chegava a uma resposta. Sabia muito bem que sair da zona de conforto, para todos nós, é difícil. Mia, como era chamada pelos pais e amigos, não tinha uma visão de si mesma como uma madre Teresa de Calcutá. E assim, com tudo isso na cabeça, não se sentia impedida de ir às compras, mais uma bolsa, mais um sapato e mais uma roupinha. 

Nas grandes avenidas de Paris divertia-se vendo as lojas das famosas marcas mundiais da moda. A Chanel, que é sinônimo do clássico e do chique. Dior, onde a feminilidade impera nos vestidos fluidos. A básica Saint Laurent, com as suas roupas sexies, porém de um jeito roqueiro e um pouco dark. Toda essas artes e criatividades envolvem a cidade luz, onde ela também se sentia iluminada ao respirar beleza, alto luxo e cultura.

Mas em alguns finais de semana, no apartamento que seus pais haviam alugado para sua estada na cidade, aquela sensação estranha novamente seguia gotejando bem de mansinho. Até que numa tarde o vento quente alisou o seu rosto, e ela se perguntou:

 — Mas preciso disto tudo?

 — E de mais tudo isto?

 

 O tempo passou, hora de voltar para São Paulo. Na chegada muitas alegrias, abraços, pais e amigos. 

Dia seguinte. Mia acorda. Uma imensa satisfação de estar em casa se misturava com aquelas gotinhas mornas que umedeciam sua testa que parecia inchada, defeituosa. Tudo se misturava e tudo continuava presente. 

Mas ela, tão feliz, precisava fazer alguma coisa da sua vida. Sentiu-se medíocre. Como arranjar uma voz suave, meiga e firme para falar de si mesma?

Resolveu o que precisava. Sim, a medicina, disse em voz alta, vou estudar medicina. Sabia exatamente de onde vinham aquela decisão e certeza. Mia e Eugênia são diferentes e, ao mesmo tempo. Iguais – a cidade luz iluminaria ambas, no verso e no reverso.

Hoje Mia é medica fisiatra, tem um amplo consultório, muitos pacientes, mas duas vezes por semana atende na periferia. Eugenia faz a sua parte. Quer sentir a esperança, com conteúdo próprio, como o murmúrio das águas puras a escorrer entre as pedras.

 

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.