A realidade impõe situações em que talvez a pessoa não deseja estar, e foi isso o que aconteceu comigo: dinheiro contado, mal dando para pagar as contas… como dar a volta por cima e conseguir que minhas filhas estudassem, tendo a base, o preparo que eu não tive?

Vim de uma família com poucos recursos, da periferia de São Paulo, sem condições para frequentar instituições de qualidade. Tive sorte ao estudar em uma boa escola pública até a adolescência, depois segui em cursos profissionalizantes para arranjar logo um emprego. Quando a Any nasceu, e eu mãe solo ainda por cima, trabalhando no setor administrativo de um hospital, jurei que ela teria uma formação muito diferente da minha. A educação transforma vidas.

Fui atrás de bolsas nas escolas particulares e a resposta era sempre a mesma: não! Então comecei a chegar com a pergunta: precisa de recepcionista ou faxineira? Consegui matricular a Any no primeiro ano do Ensino Fundamental em uma escola particular muito boa, em Osasco, negociando a troca de serviços pela mensalidade do curso. Fazia a faxina no escritório e nos banheiros do colégio de elite. Ela estava com seis anos e era a única preta da escola.

Claro que sofreu bullying. Racismo. Hoje sabemos mais disso tudo, sabemos dar nome àquela agonia que a gente sentia, quando Any não era convidada para nada, ignorada nos recreios, e até insultada muitas vezes. Mas a gente driblava isso também, porque aquele era o caminho a seguir. 

Além do bom colégio, queria que ela fizesse inglês, tivesse aulas de canto, frequentasse escolinhas de teatro e balé… E assim, além das faxinas na escola e do meu emprego regular, trabalhava em um buffet de festa infantil nos finais de semana e as vezes como segurança, em uma escola de samba na zona norte de São Paulo. 

Aos sete anos Any já dava sinais de que cumpriria aquele sonho, que me sussurrou num sonho, quando eu ainda estava grávida – seria uma grande estrela. Dançava muito bem, sempre se destacava nas turmas, tinha uma voz linda. Levamos para uma audição na Escola de Dança de São Paulo – e Any conseguiu uma vaga! Daí começou também uma rotina puxada pra nós duas, pra dar conta de tudo.

Fazia a marmita da Any, buscava na escola pontualmente às 12:30 – e enquanto ela almoçava no ônibus, eu ía fazendo o coque no cabelo para o balé, levava escova, spray, tudo. Depois a gente pegava o trem, onde ela fazia a lição de casa. Saindo do trem, metrô e ufa: Anhagabaú e Teatro Municipal. 

Nas terças e quintas, quando não havia a escola de dança, ela frequentava o Coral Palavra Encantada, na estação Vergueiro, e nossa rotina era basicamente a mesma. Duas horas pra ir, duas pra voltar. 

As pessoas do meio simples em que vivíamos me diziam: mas fazer inglês para quê? Será que vale à pena estudar em escola boa e “passar fome”? Essa menina vai ficar super metida e nem carro ela tem… Nós não encarávamos como passar fome, e sim lutar para alcançar os objetivos. E dentro do ônibus inventávamos entrevistas para jornais, revistas. Quais roupas que ela usaria nos shows… as lembranças que tenho desses momentos é de que tudo valeu à pena.

Quando Belinha nasceu, seguia conosco ainda bebezinho… Se eu não tivesse com quem deixá-la, iria comigo e a irmã pelos ônibus e trens da cidade. E logo que chegou sua fase escolar, fiz o mesmo percurso, junto aos colégios – oferecendo serviços em troca da mensalidade que ainda não podia pagar… Sempre busquei todas as oportunidades possíveis, para formá-la como boa e competente cidadã para o mundo.

Hoje a Any está com 20 anos, fluente em inglês e espanhol, estudando francês. Já viajou por mais de 20 países. Com um conhecimento cultural admirável. Foi fundamental ter a base educacional e extracurricular para conseguir passar por tantas provas e audições, conquistando uma carreira internacional.

A educação, o conhecimento, abrem horizontes que expandem nossa transformação de dentro para fora. Porque nos faz pensar fora da caixinha, e nos faz acreditar que sim, tudo é possível. 

 

* Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IstoÉ.