Uma mulher parda foi desclassificada de um concurso público federal da Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) após a banca de heteroidentificação avaliar que a candidata não apresentava características fenotípicas que a qualificassem como pertencente ao grupo apto a ter acesso a cotas raciais. Luana Dandara Barreto Torres explica que, no parecer, a comissão a descreveu como de pele “inexpressiva” e textura “inexistente”. A entidade responsável pelo processo é o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe), que nega que tenha faltado critério da banca responsável pela avaliação.

Moradora de Belo Horizonte, Luana tem 32 anos, formação em Engenheira Ambiental e Urbana e concorria ao cargo de Especialista em Recursos Hídricos e de Saneamento Básico. No dia 16 de junho, após a primeira aprovação, passou por uma análise de suas características fenotípicas para realizar a autodeclaração de pertencimento étnico-racial e, dez dias depois, foi excluída do sistema de cotas do concurso.

Mulher parda é desclassificada de concurso por ser avaliada como 'branca' pela banca de heteroidentificaçãoMulher parda é desclassificada de concurso por ser avaliada como 'branca' pela banca de heteroidentificação

“Em toda a minha vida, nunca passei por algo parecido. Nunca imaginei que a essa altura ouviria de uma banca de heteroidentificação que sou branca, invalidando todo o histórico de preconceito que já vivenciei. A gente chega a começar a questionar a própria identidade”, declara Luana.

Diante do resultado emitido em 26 de junho, Luana recorreu administrativamente pedindo uma revisão detalhada do vídeo gravado durante a avaliação. A candidata queixa-se, porém, do método de reavaliação, que será feito por meio da análise do mesmo material.

Luana aponta ainda a inconsistência do método de heteroidentificação, que segundo ela em alguns estados deferiu autodeclarações de pessoas de pele mais clara, enquanto em outros julgou com rigor excessivo. A candidata mantém contato com outras pessoas que prestaram o concurso e também tiveram o acesso às cotas negado.

“A banca é composta por cinco pessoas, incluindo brancos. Você entra em uma sala, elas te olham, a câmera aponta para você, nada é perguntado e, em poucos minutos, a análise está feita”, conta Luana. Dos cinco membros da comissão, apenas um considerou a candidata apta a adquirir acesso à cota racial.

A candidata argumenta que o método precisa ser repensado. Segundo ela, é ineficaz um processo que não leve em conta o contexto social e pessoal de cada indivíduo para compreender sua identidade racial ou étnica.

O resultado da reavaliação será divulgado no dia 10 deste mês. Se for negado, Luana expressa preocupação por ter que desembolsar pelo menos R$ 5 mil para recorrer e garantir um ‘direito legítimo’.

A IstoÉ procurou a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e o Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cebraspe), mas não obteve retorno até a publicação desta matéria. O espaço segue aberto para manifestações.

O que diz o Cebraspe

O Cebraspe informa que todos os candidatos dos concursos públicos realizados pelo Centro, que solicitam concorrer às vagas reservadas aos candidatos negros e são convocados para o procedimento de heteroidentificação, complementar à autodeclaração, são submetidos à verificação do fenótipo. O procedimento visa analisar, tão somente, se o participante do certame possui um conjunto de características fenotípicas da pessoa negra.

Conforme legislação aplicável a cada certame, a comissão de heteroidentificação poderá ser composta por três ou cinco integrantes e seus suplentes, bem como deverá ter seus integrantes distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade. A definição do número de componentes é estabelecida no edital de abertura de cada processo seletivo.

A escolha da banca é realizada conforme critérios estabelecidos no Art. 19, da Instrução Normativa 23/2023 MGI, disponível aqui.

Registra-se que a alegação da candidata de que a banca emitiu parecer “sem critério” não procede, uma vez que todos os candidatos têm acesso à planilha de avaliação da banca, na qual constam as características fenotípicas analisadas. Registra-se também que o procedimento de heteroidentificação não tem como escopo verificar miscigenação de raças, mas sim verificar se o candidato apresenta um conjunto de características de pessoa negra, sendo essa preta ou parda.

Por fim, informa que aproximadamente 80% dos candidatos autodeclarados negros têm sua condição confirmada pela comissão de heteroidentificação nos processos seletivos realizados pelo Cebraspe. Dos que não são considerados negros, cerca de 5% têm sua situação revertida por meio da etapa recursal. 

O que diz a ANA

O processo de heteroidentificação é conduzido pelo Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (CEBRASPE), que realiza o concurso público para a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e possui larga experiência e competência técnica em concursos públicos.

Ademais, o CEBRASPE segue todos os critérios e diretrizes legais vigentes no contexto do certame da ANA. Em 26 de junho de 2024 foi divulgado o resultado provisório dessa avaliação e os candidatos puderam interpor recursos contra as avaliações até 28 de junho. A análise dos recursos é realizada de forma independente por uma banca distinta da que realizou a avaliação de heteroidentificação. O resultado da análise dos recursos dessa etapa do concurso está previsto para ser divulgado em 10 de julho.