BÉLGICA Em Bruxelas, caminhoneiros tiveram de ir de metrô ao centro (Crédito: Dursun Aydemir)

Movimentos como os dos caminhoneiros na fronteira do Canadá com os Estados Unidos voltaram a ocorrer, espalhando-se pelo mundo nos falsamente chamados “comboios da liberdade”. Dessa vez, as manifestações não reuniram apenas ativistas contra a obrigatoriedade na Europa do passaporte de vacina antiCovid, mas ganharam o apoio de grupos políticos extremistas. Eis o resultado dessas reivindicações desfocadas, sob o amplo guarda-chuva da “liberdade”: o fortalecimento de radicais de extrema-direita, chamados por meio de redes sociais, com alguns armados e até ostentando faixas com frases nazistas, a exemplo dos manifestantes presos no Canadá.

O efeito colateral foram perdas políticas como as de Emmanuel Macron, que em abril tenta a reeleição à Presidência da França diante de uma retomada de críticas emprestadas dos “coletes amarelos” contra a alta do custo de vida e cortes em benefícios sociais. Por isso, tanto Macron como o primeiro ministro canadense, Justin Trudeau, acenaram com a flexibilização antecipada de regras sanitárias, esperando que a movimentação dos comboios se diluísse.

Liberdade, mas para radicais

Para Filipe Doutel, psiquiatra formado em Ciências Médicas na Santa Casa de São Paulo, com residência clínica na França, a insatisfação cada vez maior das pessoas – e também cada vez mais difusa – está no cerne desses movimentos que aparecem mesmo em países com maior grau de desenvolvimento. Há um “incômodo geral”, pela sensação de promessas não cumpridas e falta de perspectiva de ascensão social da classe média, que se distribui por redes sociais em ameaças plantadas para espalhar medo instantaneamente. “Daí as reações primárias e rápidas, como as dos movimentos não enraizados que parecem flashmobs convocados para vídeos viralizantes”, observa ele.

“O terreno da insatisfação e do medo é fértil para quem domina
a linguagem da propaganda” Filipe Doutel, psiquiatra

No fim de janeiro, centenas de caminhoneiros canadenses se colocaram contra a exigência do comprovante de imunização ao cruzar a fronteira para os EUA. Ruas de cidades importantes e estradas com passagens fronteiriças estratégicas foram tomadas, gerando confrontos com a polícia e prisões. Em Coutts, acabaram apreendidos armamento pesado, munição e coletes à prova de balas, além de cartazes com símbolos nazistas. Ao mesmo tempo se investigava a entrada no país de extremistas americanos, como os Proud Boys, classificados como terroristas. Por isso, quando Trudeau invocou o Ato de Emergências para dispersar os caminhoneiros, incluiu o congelamento de contas bancárias. Foi a resposta a doações (cerca de R$ 40,6 milhões), na maioria lançadas a partir dos EUA para a plataforma GiveSendGo, com apoiadores de Donald Trump na lista de doadores.

FRANÇA Policiais e manifestantes entram em confronto: bloqueio aos comboios (Crédito:Serge Tenani / Hans Lucas)

Os conflitos reverberaram na França, onde mais de 30 mil caminhoneiros locais e de outros países se arrastaram em “comboios da liberdade” rumo a Paris. No fim de semana, dos 7,5 mil que chegaram à capital, 10% seguiram para Bruxelas, na Bélgica, simbólica como sede de reuniões do conselho do Parlamento Europeu. Tiveram de parar caminhões no entorno e seguir de metrô para protestar no centro. Também se repetiram os confrontos com a polícia, prisões e apreensões de armas de extremistas.

“Mesmo reivindicações justas podem descambar para a loucura. Daí a necessidade de instituições que canalizem anseios e façam mediações”, afirma Doutel. “Estamos em um mundo que precisa de ‘curadoria’, para evitar os perigos da polarização.”