Sob a liderança de Jair Bolsonaro (PL), declarado inelegível até 2030 pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), integrantes da direita na Câmara dos Deputados articulam uma mudança na Lei da Ficha Limpa para reduzir a dois anos o período que políticos condenados têm de passar longe das urnas.
Entenda o que está sendo discutido:
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Aprovada em 2010, a legislação foi usada para, entre outras sentenças, retirar Luiz Inácio Lula da Silva (PT) das eleições de 2018. Bolsonaro, no entanto, a vê como um instrumento de “perseguição da direita”, e seus aliados, como danosa à democracia. O jurista Marlon Reis considera que uma alteração pode deslegitimar o processo eleitoral.
Reis idealizou o projeto da Ficha Limpa, que reuniu 1,6 milhão de assinaturas e foi aprovado de forma unânime no Congresso em 2010. Nesta entrevista ao site IstoÉ, ele afirmou que o debate sobre a corrupção foi instrumentalizado por grupos que “nunca tiveram compromisso genuíno com a pauta”, mas disse acreditar em uma mobilização da sociedade civil contra a redução das punições.
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No Congresso, tramitação da Ficha Limpa reuniu políticos de diferentes espectros
IstoÉ A proposta do deputado Bibo Nunes (PL-RS) argumenta que dois anos são suficientes para a pena de inelegibilidade e que a Lei da Ficha Limpa gera “instabilidade e insegurança jurídica”. O senhor concorda?
Marlon Reis Esse projeto de lei se baseia em argumentos falsos para enfraquecer uma conquista da sociedade brasileira, que lutou para garantir a integridade das eleições e afastar da política aqueles que cometeram ilícitos graves.
Um prazo de dois anos de inelegibilidade, na prática, não impede um candidato condenado de disputar a eleição seguinte, o que torna a punição ineficaz. Antes da Lei da Ficha Limpa, a pena era de três anos, o que permitia aos condenados voltarem rapidamente às urnas. Esse modelo se mostrou completamente insuficiente, e foi por isso que a sociedade e o próprio Parlamento aprovaram a ampliação.
A justificativa de que a duração atual é excessiva ignora o fato de que a inelegibilidade não é uma punição penal, mas sim um mecanismo de proteção da administração pública e do próprio eleitorado. Não há base jurídica para a proposta, que visa exclusivamente abrir caminho para que políticos condenados – incluindo Jair Bolsonaro – possam disputar as eleições de 2026.
“A proposta visa permitir que políticos condenados disputem as eleições de 2026. Não há base jurídica”.
IstoÉ Depois de ser aprovado com apoio da esquerda à direita, o texto sofreu críticas de petistas em 2018, quando Lula foi declarado inelegível, e agora enfrenta um ataque ainda mais duro do entorno de Jair Bolsonaro. Houve base jurídica para algum desses movimentos?
Marlon Reis Nunca. Houve esforços meramente políticos para beneficiar figuras específicas. É insustentável argumentar que o prazo de oito anos de inelegibilidade é excessivo, tendo em vista que ele impede que os condenados voltem às urnas após apenas um pleito e assegura o mínimo de rigidez ao processo eleitoral.
Além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem sido clara ao reconhecer que a inelegibilidade não é uma punição, mas sim um critério de proteção ao eleitorado e ao sistema democrático. A dosimetria foi fixada dentro de um padrão lógico e necessário para garantir a integridade dos pleitos.
IstoÉ A aprovação unânime ao seu projeto no Parlamento se deu após uma ampla mobilização popular. De lá para cá, a cobrança da sociedade civil pelo combate à corrupção diminuiu?
Marlon Reis O espírito social que impulsionou a Lei da Ficha Limpa continua presente, mas o debate público foi sequestrado por grupos políticos que instrumentalizaram o tema da corrupção sem qualquer legitimidade. Alguns deles se diziam defensores da moralidade, mas hoje tentam desmontar os mecanismos de controle, o que mostra que nunca tiveram um compromisso genuíno com a pauta.
O que mudou objetivamente foi o tratamento dispensado ao combate à corrupção. Havia um entendimento coletivo sobre a necessidade de endurecer regras para garantir eleições mais justas, que foi substituído por tentativas recorrentes de flexibilizá-las em prol de interesses específicos.
Isso não significa que a sociedade tenha desistido da luta por transparência e ética. Pelo contrário: a reação popular a tentativas de enfraquecer a lei mostra que a demanda ainda existe, e deve ser intensificada.
“Há grupos que se diziam defensores da moralidade, mas hoje tentam desmontar os mecanismos de controle”.
IstoÉ As penas de inelegibilidade aplicadas a Lula e Bolsonaro ressoaram em análises de que, dada a popularidade de ambos, realizar eleições sem eles seria antidemocrático. Esse fator deve pesar em eventual rediscussão da lei?
Marlon Reis Não. A aplicação da Lei da Ficha Limpa em 2018 [Lula] foi correta e seguiu a legislação vigente, independentemente de quem foi afetado. O mesmo se aplica agora [Bolsonaro]. Permitir que qualquer pessoa concorra não fortalece a democracia, mas sim garantir que aqueles que violaram as regras do jogo democrático não possam continuar disputando eleições como se nada tivesse acontecido.
O que deslegitima o processo eleitoral é alterar uma legislação consolidada para beneficiar um único indivíduo. Essa legislação tem um objetivo de longo prazo, não foi criada para um caso específico ou uma eleição em particular. Mudá-la com o objetivo claro de favorecer Jair Bolsonaro seria um verdadeiro golpe contra a legitimidade do sistema eleitoral.
IstoÉ Bolsonaro afirmou que a Lei da Ficha Limpa serve para “perseguir a direita”, argumentando que a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) não perdeu os direitos políticos após sofrer impeachment, em 2016. O senhor concorda?
Marlon Reis Essa afirmação é completamente falsa. A maior prova disso é que o próprio Bolsonaro foi beneficiado pela aplicação da lei em 2018, quando Lula, o então candidato mais bem colocado nas pesquisas, teve sua candidatura barrada com base na mesma legislação. O texto não tem viés ideológico, e se aplica a todos que tenham cometido ilícitos que gerem inelegibilidade, independentemente de partido ou posicionamento.
“O próprio Bolsonaro foi beneficiado pela
aplicação da lei em 2018”.
A comparação com o impeachment de Dilma Rousseff é igualmente inverídica. A inelegibilidade decorrente da Lei da Ficha Limpa nada tem a ver com processos de impeachment, que possuem regras próprias estabelecidas na Constituição. O uso desse tipo de discurso reforça o caráter político da tentativa de revogação da lei, que nada tem de técnica ou jurídica.
Não é aceitável que uma alteração que enfraquece uma conquista popular — o combate à corrupção — dependa apenas de movimentação política, sem amplo debate e participação popular. Na última vez em que tentaram mudar a lei, a sociedade se mobilizou e o Senado rejeitou a proposta. Essa nova investida já começa sob os holofotes da opinião pública, a quem cabe fiscalizar e cobrar os parlamentares que a apoiarem. Não é apenas sobre 2026.