Embora em muitas situações possa haver uma tomada de consciência em relação à própria etnia, o que acontece nesta eleição é um movimento atípico de candidatos que decidiram alterar a sua autodeclaração racial ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de branco para pardo. Pelos critérios do IBGE, os pardos, junto com os pretos, compõem a população negra brasileira, que deve ser cada vez mais incluída nos processos democráticos e nos cargos de poder. Mas, no caso atual, trata-se de um enegrecimento repentino de muitos políticos que até os últimos pleitos se apresentavam como brancos, numa transformação que pode ser meramente oportunista. Entre os candidatos que tentam a reeleição para a Câmara, por exemplo, houve 33 novas declarações de raça parda. Do total de 2510 políticos de todo o País que adotaram outra cor de pele para participar da disputa deste ano, mais de um terço (938) envolveu candidatos que passaram a se identificar como negros. Apesar de a aparência não ser o único critério de identificação racial – não são apenas as características externas que definem um indivíduo etnicamente — existem suspeitas de deturpações e enganos.

O caso mais rumoroso relacionado à autodeclaração de cor foi o do candidato ao governo da Bahia ACM Neto (União Brasil), que inclusive sofreu um desgaste desnecessário junto ao seu eleitorado perdendo pontos por causa de sua escolha. No estado mais negro do Brasil, onde 81% da população se declara parda ou preta, a opção de ACM Neto motivou vários questionamentos, ainda que ele já tivesse se definido como pardo na eleição para prefeito em 2018. Para se defender, o candidato questionou os critérios do IBGE. “Eu me considero pardo. Você pode me colocar ao lado de uma pessoa branca, há uma diferença bem grande. Negro, não. Não diria isso, jamais”, disse, em entrevista à TV Bahia. Entre os candidatos a deputado federal que tentam se reeleger e mudaram de cor estão Professor Israel (PSB-DF), Heitor Freire (União-CE), José Rocha (União-BA) e Luís Miranda (Republicanos-DF). O governador Ibaneis Rocha (MDB-DF), candidato à reeleição, também se tornou pardo. Na Bahia, candidatas loiras como, por exemplo, a delegada Kátia Alves e Marisete, ambas do partido União Brasil, se identificaram como pertencentes à população negra. O candidato ao Senado pelo Paraná Paulo Martins (PL) foi outro que mudou sua autodeclaração. Em 2014, concorrendo ao cargo de deputado federal, se apresentou como branco.

“Eu me considero pardo. Você pode me colocar ao lado de uma pessoa branca, há uma diferença bem grande. Negro, não. Não diria isso, jamais” ACM Neto, candidato ao governo da Bahia, questionando os critérios do IBGE

Uma das razões do aumento de candidatos que se autodeclaram pretos e pardos é que eles passaram a ter direito a cotas maiores dos fundos partidário e eleitoral, por causa da aprovação da Emenda Constitucional 111, em setembro de 2021. Pelas novas regras, que entram em vigor neste ano, os votos dados a esses candidatos valem o dobro na hora de calcular a distribuição dos recursos. É mais uma medida inclusiva cujo objetivo é aumentar a participação de candidatos negros nas eleições. Em várias comunidades ser negro pode ser uma vantagem competitiva por causa da identificação com o eleitor. Não por acaso, o total de candidatos pretos e pardos para a Câmara aumentou em 2022. Somadas homens e mulheres negros serão 4.886 candidaturas, ou 47% dos 10,3 mil políticos que estão na disputa. Em 2018, foram 3.586, 42% de 8,6 mil. Os dados mais recentes do TSE indicam o registro total de 1.424 candidaturas pretas e 3.462 pardas.Candidatos usam o artifício de se autodeclararem pardos e pretos para obter maiores verbas públicas

De um modo geral, esse crescimento é altamente salutar e positivo para a democracia brasileira. A população negra tem historicamente uma inserção política muito inferior à sua representatividade social. É preciso estabelecer medidas afirmativas para ampliar essa participação. Mas a questão da autodeclaração racial é mais complexa do que parece. A questão étnica não pode ser reduzida a mero colorismo e envolve um compromisso ético de quem se autodeclara. Não pode haver abusos e nem mentiras. Nestas eleições o que se percebeu foi um certo oportunismo de alguns candidatos. Um equilíbrio delicado precisa ser alcançado para uma sociedade que quer se sofisticar e se tornar mais justa.