A Flauta Mágica, de Mozart, é uma das óperas preferidas do público, costuma agradar em especial às crianças, com temas como o da Rainha da Noite, reconhecíveis mesmo para quem não costuma frequentar o teatro lírico. Mas o diretor cênico André Heller-Lopes fugiu dela o quanto pode. Recusou convites, sugeriu outras possibilidades sempre que possível. “Eu tinha um problema sério com ela”, ele diz. Mas chegou a hora e a partir desta sexta-feira, dia 15, o Teatro Municipal de São Paulo apresenta uma nova produção da obra, com direção cênica assinada por ele. Mas, do seu jeito: uma Flauta que não é lúdica, infantil, bonitinha, mas que questiona a própria oposição entre bem e mal que está em sua essência.

Estreada em 1791, ano da morte do compositor, a Flauta Mágica foi colaboração de Mozart com o libretista Emanuel Schikaneder. A simplicidade de sua trama paradoxalmente carrega grandes mistérios: a ópera já recebeu leituras que vão desde a investigação de símbolos e evocações maçônicas que Mozart insere na partitura até uma recriação que tem como pano de fundo trincheiras da Segunda Guerra. Narra a história dos jovens Tamino e Pamina, que ficam juntos quando vencem o mal encarnado pela Rainha da Noite e se aliam à sabedoria simbolizada por Sarastro.

Mas não exatamente, acredita André Heller-Lopes. “A Flauta Mágica foi minha ópera favorita por muito tempo, até que comecei a ler bem em alemão e prestei atenção no texto original. Aí foi um pepino”, brinca também o diretor cênico, explicando em seguida. “Como lidar com o que diz Monostatos a respeito dos negros ou mesmo com o modo como Sarastro se refere às mulheres?” Monostatos é tratado, na obra, como um “mouro perverso” e em sua ária afirma que negros são feios e brancos, belos, ao falar de sua paixão por Pamina; Sarastro, por sua vez, se sai com pérolas como “um homem deve guiar seu coração, pois sem isso toda mulher tende a ultrapassar sua esfera natural”, enquanto um de seus oradores afirma a certa altura que “mulheres fazem pouco e fofocam muito”.

O crítico inglês Tim Ashley relembra que Mozart é um homem do século 18, que segue os ideais do Iluminismo, ideais que, segundo ele, “ainda que progressistas, eram brancos, masculinos, heterossexuais e predominantemente burgueses”. Ainda assim, isso coloca, para Heller-Lopes, um desafio ao diretor. “Em uma ópera como Um Baile de Máscaras, de Verdi, você tem o juiz carrasco agindo com preconceito contra Ulrica. Isso é uma coisa. Mas, aqui, figuras como Sarastro teoricamente devem representar o bem, os mocinhos, a sabedoria”, explica em seguida.

Isso levou o diretor a pensar de uma outra forma o lado “mal” da história, simbolizado pela Rainha da Noite. “Veja, o que você faria se raptassem a sua filha? Como você agiria? Até que ponto não somos todos como ela. Além disso, é interessante que não a vemos fazendo o mal ao longo da ópera, apenas sabemos de sua maldade pelo que os outros dizem. Há também um livro em que Michael Freyhan mostra que há diferenças no texto entre o manuscrito e a primeira versão editada da ópera, revelando que, na verdade, a ideia de associá-la ao mal é algo que só vai acontecer depois que boa parte do texto já estava escrita”, explica o diretor, que já esteve à frente em São Paulo de produções como a tetralogia O Anel do Nibelungo, de Wagner, ou Ariadne auf Naxos, de Strauss.

A partir daí, Heller-Lopes resolveu deixar de lado a oposição entre bem e mal e seguir em outra direção. “A Rainha da Noite acaba simbolizando o mundo real, enquanto Sarastro vive uma ilusão. Com ela no palco, veremos os bastidores do teatro, a parte feia do cenário; com ele, temos uma cenografia que evoca a mágica dos cenários de ópera do período barroco. Você prefere a realidade com suas falhas ou uma ilusão de beleza? É essa a pergunta que fica para o público responder ao fim do espetáculo”, complementa.

Heller-Lopes é atual diretor artístico do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, para onde essa produção deve seguir no ano que vem. Trabalhou com dois elencos, formados por cantores como a soprano Gabriella Pace, os tenores Luciano Botelho e Giovanni Tristacci, as sopranos Oriana Favaro e Laryssa Alvarazi, o barítono Michel de Souza, o baixo Sávio Sperandio e a meio-soprano Luisa Francesconi, em participação especial como Papagena. A regência é do maestro Roberto Minczuk, à frente da Orquestra Sinfônica Municipal e do Coral Lírico Municipal. “Como músico, Mozart é um grande dramaturgo. As ideias do texto sempre ganham forma na música, o que não acontece em alguns casos com Haydn, por exemplo. Ele antecipa de alguma forma muito do que os românticos farão depois”, diz ainda Heller-Lopes.

A FLAUTA MÁGICA

Teatro Municipal. Pça. Ramos de Azevedo, s/nº, 3053-2090. Hoje, sáb. e de 3ª a 5ª, 20h; dom., 17h. R$ 50/ R$ 120. Até 21/12.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.