Há uma relação entre a Val de Que Horas Ela Volta e a Madá de Três Verões além do fato de ambas serem interpretadas por Regina Casé? No filme de Anna Muylaert, Val é uma doméstica de início conformada, que recebe em casa sua filha rebelde vinda do Recife. Madá ocupa cargo mais alto: é uma espécie de governanta da mansão à beira-mar de uma família carioca influente. Mas ambas são trabalhadoras domésticas. As duas estabelecem um tipo de relacionamento assimétrico com seus patrões, no estilo de sociedade de classes à brasileira em seu formato Casa Grande & Senzala.

Que Horas Ela Volta? mira o fenômeno da ascensão da classe C nos governos Lula, com estudantes pobres disputando vagas na universidade com seus colegas ricos ou de classe média, graças às políticas de inclusão. Em Três Verões, que será exibido nesta sexta-feira, 25, na 43ª Mostra Internacional de Cinema, se estuda o virar dessa página emancipatória com a chegada do terremoto político causado pela Operação Lava Jato.

Em Três Verões, Sandra Kogut mostra os efeitos dessa instabilidade nas classes populares. O ambiente é o da burguesia chique do Rio de Janeiro, representada pelo casal Edgar e Marta (Otávio Muller e Gisele Fróes), que costuma receber os amigos na mansão de Angra dos Reis. Madalena, ou Madá (Regina Casé), é a regente do corpo de funcionários – faxineiros, cozinheiras, motoristas, porteiros, etc. – que trabalha para o casal.

Boa empreendedora, Madá alimenta também um sonho pessoal, o de estabelecer-se com um quiosque e ganhar dinheiro. Precisa comprar o terreninho onde se encontra o quiosque e, para tal, pede um empréstimo do patrão. Ele vem, de maneira surpreendente. Edgar propõe comprar o velho telefone celular de Madá, exatamente pelo dinheiro que ela precisa para dar entrada no terreno. Um negócio da China, pelo menos é o que parece em princípio.

Como sugere o título, a história se desenvolve em três verões sucessivos – os de 2015, 2016 e 2017. Tempos de convulsão política no País, porém pela ótica do, digamos assim, “andar de baixo” da sociedade. Se o primeiro verão do filme é marcado pela opulência, pela sensação de que o dinheiro corre fácil, o que falar do segundo e do terceiro verões, quando os patrões somem, justamente com os convidados de sempre, e a mansão fica ao deus-dará?

É então que entra o espírito empreendedor de Madá, que tenta manter a casa em funcionamento, chegando a alugá-la como set de filmagem de comerciais. Ou promovendo tours de barco para mostrar aos curiosos as outras mansões abandonadas por seus patrões estarem “ocupados” pela operação.

Ao entregar o protagonismo a Regina Casé, Sandra Kogut escolhe o registro cômico para abordar essa tragédia política à brasileira. Com o País indo para o abismo, só o humor de Madá parece fornecer aquela famosa luz no fundo do túnel. E esta seria a infindável capacidade de improvisação do povo brasileiro, seu sentido de invenção, a técnica conhecida de fazer do limão uma limonada. Sem Casé, o filme seria outro. E não teria essa luz em que a atriz é pródiga ao interpretar – de coração – os tipos populares. Ou seja, o que de melhor existe no Brasil, a sua verdadeira elite.

O legado de Tarkovksy. Outra pedida é Andrey Tarkovsky: Uma Oração de Cinema, documentário dirigido pelo próprio filho do grande cineasta russo. No filme, percorre-se a carreira de Tarkovksy (1932-1986), por meio de sua narração em off, gravada em inúmeras entrevistas e ilustrada por trechos de filmes ou registros domésticos.

Tarkovsky é revisitado por meio dos seus filmes, A Infância de Ivan, O Espelho, Solaris, Stalker, e os feitos no exílio, Nostalgia e O Sacrifício. A busca pelo poético, pelo simbólico e pelo espiritual estabelece um distanciamento crescente entre o artista e a estética oficial da então União Soviética.

Tarkovsky afasta-se do realismo e parte para uma dimensão francamente religiosa. Seus ícones máximos no campo artístico deixam claro o que ele pretende com seu cinema: Leonardo Da Vinci, Bach, Tolstói, Bresson. São artistas do sublime. Assim como Tarkovsky tentou ser e conseguiu em diversas de suas obras. Atingir a dimensão metafísica e filmar aquilo que não se vê. Em particular, a inexorável passagem do tempo, que ele coloca em contraste com a imortalidade da alma e a crença em um ser superior.

Documentários brasileiros

Passagens e O Mês que Não Terminou têm em comum o fato de seus autores serem pessoas mais acostumadas ao trabalho teórico que ao manejo das câmeras. Em Passagens, os professores Lúcia Nagib e Samuel Paiva estudam os efeitos benéficos ao cinema vindos do diálogo com outras artes, tais como a música e a literatura. Em O Mês Que Não Terminou, o filósofo Francisco Bosco e o artista plástico Raul Mourão buscam nas manifestações de 2013 o solo de compreensão para a distopia brasileira atual. Dois filmes indispensáveis.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.