Do Brasil que se tornou especialista em matar crianças, com as balas que sempre encontram o alvo territorializado e racializado, as mortes de Emilly Vitoria, 4, e Rebeca Beatriz, 7, que estavam brincando na porta de casa, escalam patamares ainda mais inaceitáveis. A cada assassinato de crianças negras por bala de fuzil vem a certeza granítica, que se esgarça na pele e na voz, de que a trama de coincidências que conseguimos metabolizar foi superdosada. O crime aconteceu na Comunidade Santo Antônio, em Duque de Caixas, Baixada Fluminense, no último dia 5. A cena do pai fechando o túmulo da filha e da sobrinha com as próprias mãos foi dilacerante, uma espécie de convocação à sociedade brasileira para que a monotonia da indiferença seja interrompida em face de um quadro no mínimo brutal: só em 2020 tivemos 12 crianças baleadas em condições semelhantes às de Emilly e Rebeca.

Desde quando o tema da infância e da adolescência ingressou como expediente do reconhecimento e, portanto, da garantia de direitos, o que só ocorreu na ascensão do período moderno o Estado brasileiro, de base escravagista, sempre desconsiderou solenemente os direitos da criança. Algumas mudanças foram sopradas com os ventos da Constituição de 1988, que pavimentou o caminho do Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. Mas, ora, ora, eis que em pleno 2021 retrocedemos nas denúncias e reivindicações. Quando se trata de uma criança negra, pobre, moradora das franjas das metrópoles brasileiras, que ganha em Achille Mbembe à designação de topografias da crueldade, o que está em causa é a proteção da vida contra balas de fuzis. Se realmente nos deixarmos afetar pela imagem do pai e da sobrinha das meninas cimentando o túmulo das duas, atestaremos o quanto tais mortes nos devolvem ao território da barbárie, por cujas fronteiras nunca deixamos de habitar.

No Brasil, quando se trata de criança negra, pobre, moradora das franjas das metrópoles, a condição de barbárie nacional é diária

O efetivo engajamento em prol dos direitos da criança no Brasil exige mudanças de escala e de prioridade em torno das lutas e reivindicações até aqui empreendidas. Certamente é este o caminho para que num futuro não muito distante possamos reivindicar, na rubrica dos marcos civilizatório, por direito à escola, à alimentação, ao lazer, à moradia, à saúde das nossas crianças. Enquanto essas crianças seguem vítimas de balas de fuzil, a prioridade é o fim do apartheid balístico que vítima alvos sempre certeiros de balas quase sempre perdidas.