Foi na véspera de Natal que a veterana escritora norte-americana Joan Didion escolheu para se despedir, aos 87 anos. Uma gigante da literatura mundial, ela se popularizou mundialmente com dois livros sobre a perda: “O Ano do Pensamento Mágico”, a respeito da morte repentina do marido, e “Blue Nights”, sobre o colapso da filha adotada, poucos meses depois. Os dois são best-sellers, consideradas obras fundamentais para analisar o luto. E são mesmo.

Ela tinha um dos textos mais afiados e elegantes dos EUA, aperfeiçoado desde os anos 1960 no New Journalism e em revistas como a “Vogue” americana. Retratou a geração da contracultura e hippie na Califórnia, seu estado natal, com visão extremamente crítica. Em “Rastejando até Belém” (um título emprestado de um poema seminal de Yeats), ela narrou prematuramente a morte e as contradições dessas gerações. É uma antevisão premonitória sobre o extremismo e a polarização que estavam e gestação. O principal texto mostra como ela descobriu, ao fazer uma reportagem, uma criança que recebia drogas dos pais. Na contracorrente, ela retrata exatamente como essa geração perdida em drogas e sonhos inatingíveis estava se enganando, além de abrir espaço para a onda conservadora que dominaria os EUA nas décadas seguintes.

Seus livros de não ficção, incluindo a coletânea “O álbum branco”, estão sendo publicados ou reeditados no Brasil pela Harper Collins. Nos EUA, o relançamento de seus romances chamou a atenção da imprensa nos últimos meses, incluindo a revista “New Yorker”. O mercado editorial estava redescobrindo a autora, que sempre atraiu mais leitores do que os críticos da academia. Meu palpite é que isso de deve exatamente à sua popularidade e sua fluência em textos jornalísticos.

Quem tiver o prazer de folhear as centenas de matérias que deixou, vai se surpreender com uma escrita envolvente em temas que aparentemente são datados ou referenciados em uma cultura estranha ao Brasil. Ela frequentou reuniões de drogados, acompanhou think tanks do interior americano, fez uma matéria sobre Nancy Reagan (antes de virar primeira-dama), visitou a América Latina várias vezes e mudou e mudou novamente entre Califórnia e Nova York, cidade onde morava no último período.

Sofria com crises graves de enxaqueca, e explicou essa condição de forma cristalina e racional em um de seus textos. Também era uma autora para escritores, já que boa parte da sua literatura era voltada para o próprio processo de escrever. Em uma de suas histórias, narra a perplexidade da solidão em Nova York e da decadência física. O que fazer se uma pessoa solitária “apagar no meio da rua”? Apesar dos temas densos e difíceis, sua escrita era sempre luminosa.

Há um documentário na Netflix que narra seu papel fundamental para cultura americana nos últimos 60 anos, inclusive seu charme juvenil e sedutor em uma casa de praia na costa da Califórnia, quando Harrison Ford fez seus armários (ainda era carpinteiro, antes da fama). A pessoa mais próxima dela era o sobrinho Griffin Dune, um ator que fez a cabeça de Martin Scorsese e frequentava a cena independente americana. Ele terá amparado ela nos seus últimos momentos, como ela temia não acontecer?