MIL CONVIDADOS Na entrada triunfal do juíz aplausos de pé e gritos de “Presidente” (Crédito:Divulgação)

Sérgio Moro, o mito, turbina a voz com timbre de barítono e sotaque um tanto quanto pedante. Soa presunçoso, mas é direto como navalha afiada. “Não houve e não há sinais de ruptura democrática no Brasil”. Corria a noite da terça-feira, 15, na imponente edificação do Natural History Museum, em Nova York, quando o juiz, do alto das escadarias do grande salão de recepções da instituição, fez a entrada triunfal para ser consagrado como “Person of the Year” pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Sobre sua cabeça e de quase mil convidados – a maioria esmagadora de banqueiros e empresários – pendia uma baleia de proporções monumentais, talvez a lembrar o tamanho dos problemas que ainda se descortinam pela frente. Ao menos no Brasil. Moro, o homenageado, mesmo assim era saudado como herói, aos gritos de “presidente” e hurras de euforia. Logo aquiesceu. “Nada de baixar a cabeça”, provocou a turba. “O mau uso do poder para ganhos privados pode causar certa vergonha, mas o avanço das investigações deve ser motivo de orgulho”. Aplausos, assovios, cumprimentos. A plateia delirava em êxtase. Do lado de fora, cerca de 60 manifestantes, sob chuva intensa, com batuque e palavras de ordem, provocavam o establishment e atacavam Moro, a estrela da noite. “Golpista, salafrário”, gritavam aos participantes black-tie da cerimônia.

ESTABLISHMENT Moro entre João Doria e Michael Bloomberg, também homenageado (Crédito:Divulgação)

Teve quem não gostou e pequenos incidentes seriam registrados. Damas de salto Louboutin e vestidos Stella Mccartney perderam a fleuma e revidaram com o dedo do meio em riste. Nada além do pitoresco embate coxinha versus mortadela. Os nomes do juiz e do ex-presidente que ele condenou ecoaram naquele microcosmo de Upper West Side, pouco acostumado ao furdunço montado. Seria natural que a ida de Moro a Nova York para a sagração de seus resultados causasse algum incômodo e críticas dos inimigos, a reclamar da recaída mundana do caçador de maracutaias. E elas ocorreram dentro do restrito ambiente desses partidários da impunidade. Um cartaz pavoroso pregando “Lula Livre e Moro pratica lawfare” definia o tom da manifestação. Todo mundo, não apenas os altos executivos da corporação organizadora, sabia que aquele evento de sinergias dos poderosos em torno da Justiça era uma tratativa elaborada com fim definido: dar apoio, suporte e respaldo às operações desencadeadas até aqui com a Lava-Jato. E Moro, a encarnação de paladino dessa cruzada, contemplou as glórias que o cercavam e lançou seu olhar sobre a nata de endinheirados para passar o recado. “Quando recebi o convite, pensei se deveria aceitar. Não sei se um juiz deve chamar esse tipo de atenção. Mas entendi que tinha um sentido importante. Presumo que o prêmio significa que o setor privado, em geral, apoia o movimento anticorrupção brasileiro e isso, com certeza, faz uma grande diferença. Você simplesmente tem que responder não à tentativa de achaque”.

Cerca de sessenta manifestantes reclamaram do lado de fora do museu que deu palco a festa, tripudiando dos convidados

Dizem os detratores que o juiz usa a garganta como arma. Sergio Moro, o cara real, decerto falou muito por esses dias, de tal maneira que danificou a voz ao tentar domar com argumentos as cobranças de celeridade nas punições. Moro falou na conferência anual dos financistas da Americas Society Council of the Américas. Falou na convenção do Citibank. Falou sem freio durante o prêmio e falou ainda mais no encontro anual do LIDE – o grupo de líderes empresariais do Brasil, que ocorre na mesma época em Nova York, no dia seguinte à homenagem, como um after party concorrido, com alguns dos mais estelares empreendedores nacionais. No convescote do LIDE estiveram nomes como Benjamin Steinbruch, da CSN, Michel Klein, das Casas Bahia, Fabio Camargo, da Delta Airlines, Ricardo Diniz, do Bank of América, dentre outros 200 CEOs, se confraternizando em torno de um brunch para discutir o novo ciclo de crescimento brasileiro. O “Brazilian Investment Forum” do Lide é um resumo bem elaborado das intenções de empresários nacionais naquela praça: todos, absolutamente todos, estão à cata de oportunidades para turbinar seus negócios. Entre os potenciais “stakeholders”, dois tipos em especial eram os mais disputados: os financistas “made USA”, que se dedicam a bancos de investimentos, fundos de hedge, arbitragem de câmbio, incorporação imobiliária e outras formas de criação de impérios financeiros. E, de outra parte, os CEOs locais das multinacionais, detentores de grandes ideias, grandes projetos, que também estão fazendo fortuna investindo em países emergentes. Representantes das duas alas eram vistos aqui e acolá nas conversas do seminário. O ex-ministro, ex-dirigente e ainda acionista do portento de alimentos BRF, Luiz Fernando Furlan, agora na condição de chairman do LIDE, é quem tratou de anfitrionar o principal convidado com pitadas de descontração. “Moro não pode nem mais sair às compras na 5ª Avenida porque será parado a todo instante por quem reconhece seu trabalho icônico”. Foi a deixa para a fala do juiz.

Recado aos endinheirados

Ali Moro rebateu de pronto a mais inquietante das indagações que lhe fizeram: Qual deveras é mesmo o propósito de tantas andanças e conversas na terra do Tio Sam? Nas palavras do juiz: “Minha ideia ao ter aceito a este e aos outros convites, dos quais não me arrependo nem por um minuto, foi justamente passar mensagens a um público tão qualificado. Há responsabilidade do setor privado. Ele não precisa esperar mudanças de comportamento de quem está no poder”. Na cartilha de princípios do magistrado, as empresas que foram envolvidas em caso de corrupção, mais que devolver os valores públicos, necessitam mudar suas condutas. Surpreendente, discreto, obstinado e brilhante, Moro tem complexidades que podem ser muito hipócritas ou deliciosamente humanas. Ele prega as virtudes de quem não se deixa levar pela sedução do dinheiro mas, em certas ocasiões, parece inebriado pelos rapapés dos participantes dessa abastada fauna. Na rodada de convescotes americanos, a princípio esteve tenso, irrequieto, inquisidor. Depois descontraiu, como a se acostumar com a liturgia dos poderosos. No think-tank do Citibank chegou a falar ao menos dez vezes nos desvios gigantescos da Petrobras. Na noite da homenagem, diante de uma plateia que contava inclusive com o presidente da estatal, Pedro Parente, foi mais comedido e diplomático. Evitou nominar a companhia. Moro tem uma habilidade invejável para multiplicar admiradores, muitas vezes de maneira quase involuntária, com gentilezas como essa. Ávido por enfrentar o impossível – ou pelo menos o aparentemente impossível – ele levou o País (na verdade grandes corporações e o mundo político) a assumir seus pecados e a adotar medidas duras de compliance e revisão de comportamento para reduzir a corrupção sistêmica que acredita existir. A grande dinastia jurídica que instaurou, demonstrando abruptamente que crimes do colarinho branco também dão cadeia, está fazendo escola ou, ao menos, indica o que parece ser uma longa, longa trajetória de faxina moral internamente. Seu nome, desde que despontou na liderança da Lava Jato, sempre evocou temor. Seu trabalho significou investigação implacável em escala épica. A conduta evidenciou que Moro jamais seria um mero e burocrático titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, a se expressar exclusivamente na linguagem hermética dos autos. Deu para perceber no intenso circuito de convescotes nos EUA. Sergio Moro, em raras ocasiões, também se permite alguns gracejos. No seminário do LIDE arriscou brincar com as cores da gravata que ostentava. “Confesso que hoje de manhã acordei com uma certa dúvida sobre qual gravata usar neste evento. Tinha uma gravata vermelha e uma azul, isso pode ter vários sentidos. Vermelha pode significar LIDE, Partido Republicano aqui nos EUA ou Partido dos Trabalhadores. Azul pode ser PSDB ou Partido Democrata americano”. Moro foi com a gravata vermelha, talvez a demonstrar que não guarda rancores de partidários petistas costumeiramente críticos a ele. Furlan, ao final da exposição do juiz, prometeu lhe presentear com uma gravata nas cores do Brasil. Assim, alegou, dirimiria dúvidas sobre as suas preferências.

Todos sabem, nos últimos tempos o juiz Sergio Moro está tocando ruidosamente a mais espetacular empreitada legal por essas bandas. No balanço que fez de quatro anos da Lava-Jato lembrou existirem atualmente de 33 a 35 ações criminais já julgadas – com 157 pessoas condenadas por corrupção, lavagem de dinheiro e associação com o crime. Da empreitada resultou a recuperação, até aqui, de mais de US$ 12 bilhões. Como em um novelo de lã, as raízes do problema remontam uma mera investigação de doleiros que levou a descoberta de relações de desvios por parte de ex-diretores da Petrobras e, por conseguinte, ao elo desses executivos com políticos de diversas agremiações a lotear o espólio da estatal. Agora Moro está cravando uma nova etapa na trajetória da Lava Jato: a da prisão dos “capos”, chefes de quadrilha que ardilosamente montaram todo o esquema. Por essas e outras, como coroamento das realizações, Moro concluiu sua temporada americana no domingo,20, recebendo  o título de Doutor em Direito honoris causa pela Universidade Notre Dame, no estado de Indiana. Os ex-presidentes  Lula e FHC haviam recebido a mesma distinção anteriormente. Moro agora é quem faz história.