Na mesma semana, o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro (PL) pelo descumprimento de uma medida cautelar e negou a soltura do general Walter Braga Netto (PL), preso preventivamente há mais de oito meses. Ambos são réus por suposta tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022.
Enquanto o ex-presidente falou por telefone com o filho, o senador Flávio (PL-RJ), a esposa, a ex-primeira-dama Michelle (PL), e o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), em ligações exibidas e reproduzidas nas redes sociais em atos contra o Supremo no domingo, 3, contrariando a proibição de usar terceiros para publicar manifestações, o general foi preso por tentar obstruir as investigações da Polícia Federal sobre a trama golpista, que já foram concluídas.
Para Luiz Fernando Pereira, presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Paraná, a corte desrespeitou o devido processo legal em decisões recentes e reproduz práticas da Operação Lava Jato que levaram dezenas de condenações a serem anuladas, incluindo as do presidente Lula (PT), sem a mesma reação por parte dos garantistas. O cenário levou a OAB a reunir alguns dos principais penalistas do país para discutir os excessos em um congresso em Curitiba.

Luiz Fernando Pereira, presidente da OAB-PR: ‘Nunca se deve atropelar o rito de um processo’
Nesta entrevista à IstoÉ, Pereira afirmou que manifestações de Moraes têm comprometido a imparcialidade do julgamento dos acusados de golpe e lembrou que as condutas da Lava Jato também foram referendadas pelo STF inicialmente, em um “mau presságio” para o cenário atual.
Leia a íntegra
IstoÉ O que motivou a OAB do Paraná a promover uma discussão sobre a atuação do Supremo neste momento?
Pereira A necessidade de analisar tudo que vem acontecendo no tribunal, sobretudo em matéria penal, comparar com o que ocorreu na Lava Jato, e identificar se há ou não pontos de contato.
A operação não atendeu ao devido processo legal, o que redundou na anulação dos processos, e nós queremos nos perguntar se os erros [atuais] do tribunal são uma reprodução daquilo que aconteceu justamente aqui, em Curitiba [cidade que concentrou as investigações e julgamentos da força-tarefa, sob o então juiz Sergio Moro].
IstoÉ A prisão domiciliar de Bolsonaro e a extensão da prisão preventiva de Braga Netto fazem parte desses ‘erros’?
Pereira No mínimo, essas decisões justificam questionamento. Se você recuperar o que diziam os garantistas sobre as prisões preventivas alongadas da Lava Jato, você vai ver que não tem nenhuma crítica lá que não se aplique aqui. Não obstante, há um silêncio dessa turma. Era um garantismo seletivo.
Veja o caso do Braga Netto, a instrução está encerrada. [A prisão] era para obstruir a instrução. Se a instrução está encerrada, ele não tem como obstruir o que acabou. O Sergio Moro [hoje senador pelo União Brasil do Paraná], na Lava Jato, fazia exatamente a mesma coisa. Na época, diziam que era para forçar delação, que as prisões preventivas não deveriam continuar. E agora?
Esse questionamento não é uma defesa ou minimização do que houve no 8 de janeiro [quando as sedes dos Três Poderes foram invadidas e depredadas por bolsonaristas]. Os culpados devem pagar de forma rigorosa, porque a democracia estava em jogo. Mas o processo legal não pode ser mitigado pela natureza do crime; é exatamente nos casos de alta complexidade que o devido processo legal deve ser ainda mais preservado e respeitado.
“Sergio Moro fez exatamente a mesma coisa na Lava Jato”

O senador Sergio Moro (União-PR): atuação como juiz provocou anulações de processos da Lava Jato
IstoÉ No período da Lava Jato, analistas interpretavam que a operação aderiu a um discurso público pelo fim da impunidade ao crime de corrupção. No contexto atual, o discurso do STF é de que aqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito não podem ficar impunes? Esse propósito justifica que ritos sejam atropelados?
Pereira Nunca se deve atropelar o rito de um processo, independentemente da gravidade do crime. Não há ninguém no direito que defensa isso, então essa mitigação é sempre disfarçada. Ninguém vai ao plenário e diz: vamos julgar esse sujeito com menos respeito ao devido processo legal porque o crime dele é grave. Aliás, só quem pode dizer se houve crime ou não é o processo. E o processo só poderá dizê-lo se correr legalmente.
O Supremo poderá dizer que os réus cometeram crimes ao final do processo. Se os ministros disserem [que houve crime] antes, como o ministro Alexandre parece fazer em algumas manifestações, a imparcialidade do julgamento fica comprometida. As respostas duras devem seguir o script do ‘Mensalão’, em que todos os condenados foram respeitados no processo e, ao final, presos. Não vivemos esse padrão atualmente.
IstoÉ O STF está criando margem para a anulação de processos no caso da trama golpista?
Pereira O Brasil é desafiador para aqueles que se pretendem videntes, mas fato é que tudo que a Lava Jato fez foi inicialmente referendado pelo TRF [Tribunal Regional Federal], pelo STJ [Superior Tribunal de Justiça] e pelo STF, sob a relatoria do ministro Teori Zavascki [morto em 2017], com raros reparos.
Pouco tempo depois, este mesmo Supremo afirmou que tudo foi feito de forma equivocada e anulou a maioria das decisões. Portanto, há um mau presságio, e o colegiado passou recentemente a demonstrar fissuras. Pode ser um prenúncio de uma virada muito ruim, porque ninguém deve desejar a anulação de processos contra aqueles que cometeram crimes tão graves contra a democracia.
“Tudo que a Lava Jato fez foi inicialmente referendado pelo STF”
IstoÉ O senhor mencionou uma ‘falta de reação’ dos garantistas às decisões mais recentes. A divergência aberta pelo ministro Luiz Fux pode ser considerada uma resposta?
Pereira Fux é um excelente ministro, mas é curioso notar que ele pertencia ao rol dos não garantistas na Lava Jato. Não estou dizendo que ele estava errado lá, nem que esteja errado aqui, mas é preciso que a sociedade seja um observatório da coerência de interpretação do Supremo, ou o direito vira vontade.
Existe ainda um garantismo ideológico, como se a defesa da democracia fosse um salvo-conduto para atropelar o devido processo legal — a garantia da lei aos meus amigos, e o ‘vale tudo’ contra os meus inimigos. Quando os garantistas revelam incoerência e defendem diferentes paradigmas do processo, não são garantistas, mas torcedores.
“Fux pertencia ao rol dos não garantistas do Supremo”

Luiz Fux, ministro do STF: na Primeira Turma, foi o único a votar contra aplicação de medidas cautelares a Bolsonaro
IstoÉ O governo dos EUA protagonizou uma interferência inédita no Judiciário brasileiro ao revogar os vistos de ministros do STF e enquadrar Moraes na Lei Magnitsky sob a justificativa de que uma “caça às bruxas” é promovida contra Bolsonaro no país. Como o senhor encarou esse episódio?
Pereira É uma excrescência diplomática. É inaceitável que um Estado estrangeiro imponha taxas e submeta a redução à mudança de comportamento de um tribunal de um país independente, como é o Brasil.
Não há democracia sem Corte Constitucional independente, e não é à toa que elas são as primeiras vítimas do populismo tirânico, como ocorreu da Venezuela à Hungria, em regimes da esquerda à direita. Por isso, é dever institucional defender o Supremo, o que não significa dar salvo-conduto para que ele atue como quiser ou que assuma um papel exageradamente relevante na política brasileira, como assumiu.