Dois expoentes da arte abstrata do Nordeste vão expor na SP-Arte lado a lado, numa feliz reunião promovida por duas galerias da região. Do Recife, a galeria Marco Zero traz pinturas de séries históricas de Montez Magno, veterano de 88 anos. De Salvador, a galeria Paulo Darzé traz telas do pintor baiano Almandrade de diferentes períodos, do concreto à produção atual do grande artista, que completa 70 anos em maio. Ambos, Montez Magno e Almandrade, conversaram com o Estadão com exclusividade sobre a participação na SP-Arte.

Os dois artistas têm muito em comum, além da afinidade pela linguagem abstrata, especialmente a vocação poética – Magno escreve num registro próximo ao dos grandes místicos, como San Juan de La Cruz; Almandrade se manifesta numa dimensão mais concreta, que mereceu do poeta Décio Pignatari um texto elegíaco, A Persistência do Nudismo Abstrato. Ambos conviveram com o melhor da arte construtiva brasileira – Magno teve como interlocutora Lygia Pape, que assinou o texto de apresentação de uma de suas exposições. Almandrade conviveu com Hélio Oiticica, sobre quem escreveu no advento do movimento tropicalista.

Mas, a despeito de tudo que fizeram e das contribuições que deram à arte brasileira contemporânea, seus nomes ainda não circulam como deveriam no eixo Rio-São Paulo. A tal ponto chegou esse isolamento imposto pela questão geográfica que Montez Magno sugeriu ao governo pernambucano, em 1988, que fosse criada uma Bienal do Nordeste, criticando a hegemonia cultural do Rio e de São Paulo ditada pelo poder econômico.

Magno vive modestamente numa velha casa no Recife, entre suas pinturas antigas e reproduções de clássicos como As Meninas, de Velázquez – que pendurou ao lado de telas de suas melhores séries, como Fachadas do Nordeste (1996), obras em que faz uma releitura da arquitetura popular das casas nordestinas, reduzindo-as a formas geométricas essenciais.

FIGURAS

“Velázquez, em As Meninas, fala da questão do ilusionismo da pintura de uma forma muito simples, ao se colocar olhando de longe para fora dela, que é impossível não se ver refletido no quadro, como num espelho”, diz, olhando para cima, onde uma de suas “fachadas” cria igualmente um espaço reflexivo.

Além delas, obras de outra série histórica de Montez Magno virão a São Paulo, como as Barracas do Nordeste, em que o pintor, de 1972 em diante, realiza o primeiro dos três ciclos em que evidencia o lado abstracionista das barracas populares de festas e de feiras cobertas de retalhos, transfiguradas em pinturas de matriz construtiva.

Outra série de Magno que virá a São Paulo é a Tantra, que, como o próprio nome sugere, foi inspirada na filosofia zen-budista e o Tantra. Magno não professa crença alguma, mas dá a entender que tudo serve de pretexto para pintura – o que demonstra ao apontar para uma tela de sua série Morandi na parede da sala, parte de seu acervo de 1.500 obras. Esse acervo está sendo catalogado – e um de seus grandes momentos, marcados pela reverência ao pintor italiano, é a série Morandi. “Essas séries surgiam simultaneamente”, diz, explicando a razão de uma obra metafísica inspirada em Morandi (de 1964) ser contemporânea de desenhos de caráter expressionista.

Essa diversidade é outro ponto em comum com a obra do colega baiano Almandrade, que, solitário e isolado em Salvador, criou uma obra sólida, começando pelos primeiros ensaios figurativos (1970/71), passando pelo objetos insólitos que tanto encantaram Hélio Oiticica nessa mesma época, até atingir a maturidade da pintura nos anos 1990, quando a palavra, que era soberana até então (marca de sua poesia concreta), cede lugar a uma ordem cromática vibrante que dispensa a retórica. Toda essa carreira poderá ser vista na pequena retrospectiva que o galerista Paulo Darzé vai montar em seu estande na SP-Arte.

INSERÇÃO

O fato de transitar entre a arte de tendência construtiva e o conceitual não facilitou a inserção de Almandrade no circuito de arte. Ele, porém, não se sente injustiçado pelo eclipse. “O fato de ter um vínculo estreito com a poesia concreta talvez tenha dificultado um pouco esse processo, porque as pessoas esperam que o artista traduza o que faz, o que é impossível.” O repertório de cada um define essa leitura e o artista não pode ser intérprete da própria obra, em outras palavras.

O crítico Paulo Herkenhoff já chamou a atenção para o entrecruzamento da arte de Almandrade com a de Montez Magno, argumentando que eles criaram um “lugar profícuo entre a construção e o conceito” – reforçado, no caso de Almandrade, pelo vínculo original com a poesia visual dos anos 1970. Como representante das vanguardas dessa época, Almandrade evoluiu para uma pintura que hoje dialoga com vetores da arte contemporânea de Rio e São Paulo. Tudo o que os dois artistas precisam, portanto, é de um olhar atento.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.