No momento em que um projeto de lei sobre transformar clubes de futebol em empresa é formatado na Câmara dos Deputados, a tabela da Série B do Campeonato Brasileiro mostra realidades diferentes de times que já seguiram esse caminho. Segundo Ary Rocco Júnior, professor da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP) e diretor de relações institucionais da Associação Brasileira de Gestão do Esporte (Abragesp), existem dois modelos de clube-empresa no Brasil.

“Há os que são criados como empresas, constituídos legalmente como limitadas, com um dono claramente definido, que põe dinheiro e quer retorno, e que se enquadram na lei com toda a tributação específica de empresa. Inclusive com seus gestores podendo responder com patrimônio se a empresa der calote”, explica. “E há o clube entidade associativa, sem fins lucrativos, que cria uma empresa para gerir seu futebol. Esse modelo, na minha opinião, é mais sujeito ao fracasso, porque quem for administrar estará sujeito a uma série de interferências da entidade associativa”, emenda.

Figueirense em crise

O Figueirense está na vice-lanterna da Série B com 22 pontos e não vence há 13 partidas. Em 20 de agosto, em protesto contra o atraso no pagamento de salários e direitos de imagem e o não recolhimento de FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) de atletas e funcionários, os jogadores se recusaram a enfrentar o Cuiabá na Arena Pantanal e o time perdeu o jogo por WO.

O clube se encaixa no segundo modelo descrito por Rocco Júnior. O futebol do Alvinegro é comandado por uma sociedade anônima que tem como acionista majoritária (95%) a empresa Elephant. O clube associativo detém os outros 5%. A transferência da gestão foi assinada em agosto de 2017.

A previsão era de que o grupo investisse R$ 20 milhões, mas o aporte não foi captado e as dívidas aumentaram. A Elephant tem como presidente Cláudio Honigman, uma das 12 pessoas (físicas e jurídicas) ligadas à agremiação e listadas em uma liminar do Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina (MPT-SC) que pediu, em agosto, o bloqueio de bens no valor de R$ 9,6 milhões, déficit trabalhista estimado pelo clube para o ano.

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Segundo Filipe Rino, advogado do elenco do Figueirense, após a quitação de pendências anteriores o time catarinense voltou a atrasar salários e direitos de imagem. Além disso, jogadores da base ficaram sem alimentação antes de um jogo contra o Avaí, no sábado, dia 14. Recentemente, o plano odontológico dos atletas foi cortado por falta de pagamento.

“Quando você pensa nas modernas ferramentas de gestão, o planejamento estratégico em grandes empresas é algo para três, cinco anos. Em uma entidade associativa, não se consegue isso porque o mandato (do dirigente) é inferior. Muda a gestão, muda o planejamento e tudo começa do zero”, analisa Rocco Júnior. “É evidente que, no caso da Elephant, seria bom o clube reassumir. Como a empresa não tem cumprido o prometido, há uma série de cláusulas que determinam a volta do controle acionário para o clube, como a queda à Série C”, pondera.

Bragantino em alta

Na outra ponta da Série B, o Bragantino lidera com 42 pontos em 22 jogos. Em abril, o clube passou a ter o futebol gerido pela multinacional de energéticos Red Bull, que comanda outras três equipes no exterior, na Áustria, Alemanha e Estados Unidos. Na próxima temporada, o clube passará a se chamar “Red Bull Bragantino”.

A empresa entrou no futebol brasileiro no fim de 2007. Antes da parceria com o Bragantino, fundou um time. O Red Bull Brasil foi da quarta à primeira divisão do Campeonato Paulista em sete anos e chegou três vezes às quartas de final. Mas a dificuldade de crescer em nível nacional fez os dirigentes mudarem de estratégia.

“Essa foi uma razão. A outra, obviamente, era que (o time), de alguma forma, estava algo artificial. Não tínhamos muitos torcedores. Mas com o Bragantino é diferente. Temos uma equipe de Série B, podendo chegar na Série A. Um clube com história e torcida. Buscamos o acesso”, explica o alemão Ralf Rangnick, diretor global técnico da Red Bull.

A multinacional se envolve com a modalidade desde 2005, quando comprou o Salzburg, um dos times mais tradicionais da Áustria. Em 14 temporadas, o clube foi campeão austríaco 10 vezes. Mas os títulos não atraíram os torcedores do “antigo” Salzburg, indignados com mudanças na identidade do clube (a cor violeta deu lugar ao azul e vermelho da empresa, por exemplo) e que fundaram uma nova equipe, o Austria Salzburg.

Rejeição semelhante houve na Alemanha. Em 2009, a multinacional adquiriu o SSV Markranstädt, à época na quinta divisão. Como a federação alemã não permite que os clubes sejam batizados com nomes de patrocinadores, surgiu o RasenBallsport — em português, “esporte com bola sobre a grama”. Apesar da subida meteórica, mesmo o terceiro lugar na última Bundesliga (elite do Campeonato Alemão) ou a vaga na Liga dos Campeões não conquistaram a simpatia de torcedores do país, que há três anos elegeram o RB Leipzig o time mais impopular do país em pesquisa da Braunschweig Technical University.

“Na Alemanha, há a regra 50% + 1. A maior parte das ações deve pertencem ao clube ou a seus torcedores. Na maioria dos clubes tradicionais, os torcedores pensam que o time deve pertencer a eles. Na minha opinião, isso é ultrapassado. No futebol moderno, você tem de desenvolver os clubes como empresas. Essa era a razão pela qual não éramos muito populares no início na Alemanha. Nas divisões inferiores, era pior. Mas, na primeira divisão, mudou bastante. Acho que as pessoas perceberam que fazemos um bom trabalho e respeitam isso. O mesmo aconteceu em Salzburg”, avalia Rangnick.

Outros casos

Desportivo Brasil e Audax são clubes que já surgiram como empresas. O primeiro mantém Porto Feliz (SP) como “casa” e foi fundado em 2005 pelo grupo de marketing esportivo Traffic, para formar atletas e negociá-los com o mercado brasileiro e internacional. Entre os jogadores revelados estão o meia Gustavo Scarpa (Palmeiras) e o zagueiro Léo Duarte (ex-Flamengo, hoje no Milan, da Itália).


Em 2014, o Desportivo foi adquirido pelo grupo chinês Luneng — proprietário do Shandong, uma das principais equipes da China. O time, que disputa a terceira divisão do Campeonato Paulista, segue com o mote da formação. Mas não só.

“Uma vez por ano, o Desportivo recebe duas equipes, sub-16 e sub-17, formadas por chineses, que passam um ano treinando e fazendo amistosos contra times brasileiros”, conta Rocco Júnior, que trabalhou no clube. “Eles (chineses) investem para os atletas voltarem ao país deles melhor do que quando saíram”, emenda.

Já o Audax, hoje com base em Osasco (SP), começou na verdade na capital paulista em 1985, também para formar talentos. Um deles o meia Paulinho (ex-Corinthians, defendeu a seleção brasileira na Copa do Mundo da Rússia). Fundado como Pão de Açúcar Esporte Clube pela rede de supermercados com mesmo nome, virou “Audax” em 2011, dois anos antes da mudança de cidade com a venda do clube ao empresário Mário Teixeira.

Em campo, o time viveu altos e baixos. Em 2016, foi vice-campeão paulista, mas, dois anos depois, foi parar na Série A3 — a qual venceu neste ano, conquistando acesso à Série A2 (segunda divisão estadual). Os maiores feitos vieram no futebol feminino, com os títulos da Copa do Brasil (2016) e da Libertadores (2017), ambos em parceria com o Corinthians.

Questão de gestão

Para Rocco Júnior, o modelo predominante no futebol brasileiro, com entidades associativas, é atrasado. “A concentração de riqueza tem provocado um aumento na distância do poderio econômico para o Brasil. Não temos capacidade financeira de acompanhá-los e nossa estrutura administrativa dificulta o investimento privado. Precisaríamos de uma estrutura de governança e jurídica que fosse favorável ao investimento de capital privado e estrangeiro. O futebol brasileiro ainda é um produto interessante no exterior, e a mudança seria para ele continuar competitivo no cenário internacional”, afirma.

O que não significa que somente o modelo clube-empresa seja válido. O professor destaca Flamengo e Palmeiras, líder e vice-líder da Série A do Brasileirão, como exemplos de gestão em clubes “tradicionais”.

“São times que passaram a pagar suas dívidas, criaram condições de crescimento sustentável e estão colhendo seus frutos. O Bahia, também, está indo bem. A questão está na gestão. É que o modelo associativo acaba sendo mais dependente de uma boa gestão do que um modelo empresarial, porque seus donos são os associados. A cada dois, três anos, você troca o administrador (presidente), que está gerindo um bem que não é dele”, conclui.


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