A Igreja Católica sangrava a tal ponto com a perda de fieis, com as estranhas transações financeiras em Roma e os escândalos envolvendo abusos sexuais, que era urgente a instauração de princípios disciplinadores no Vaticano. Desde o século XVI, com a criação da Companhia de Jesus, arrumar a casa tem nome: Ordem dos Jesuítas. Foi formando-se nela que chegou à Santa Sé como pontífice Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Todos os problemas ele resolveu com a discrição sob medida que em nada enfraquece a autoridade. E, assim, promoveu uma radical internacionalização do catolicismo, aproximando-o de líderes religiosos esquecidos. Sem a ideologia política e até partidária da Teologia da Libertação, Francisco também optou pela entrega da Igreja aos pobres, mas somente por meio da fé e religiosidade.

MUDANÇA DE PARADIGMA A posse dos novos cardeais: valorização da atuação pastoral e não do tradicionalismo (Crédito:Alessandra Benedetti )

Essa doação da Igreja aos humildes talvez seja a sua última grande missão. No final da semana passada, em Consistório Ordinário Público, Francisco empossou vinte e dois novos cardeais, entre eles dois brasileiros: dom Paulo Cezar Costa, arcebispo de Brasília, e dom Leonardo Ulrich Steiner, arcebispo de Manaus – é o primeiro da Amazônia (leia Box). Ele deu posse, ainda, a religiosos até então pouco valorizados: dom Peter Okpalike, da Nigéria; dom Jean-Marie Aveline, da região francesa de Marselha; dom Fernando Vérgez, espanhol que preside o Governatorato do Vaticano; e dom Giorgio Marengo, da Mongólia. Ficou claro, assim, que o jesuíta Francisco preferiu os representantes da Igreja Católica que mantêm trabalho pastoral. No Brasil, ao longo da semana, a CNBB assumiu o compromisso de seguir por esse caminho instituindo a Formação de Catequistas.

Todos os novos cardeais possuem o direito de integrar o colégio cardinalício, composto por cento e trinta e dois membros que participam dos conclaves para escolha de papas. Francisco fez do cardinalato não mais um passo burocrático advindo do tempo de vida eclesiástica, mas, sim, uma forma de incentivo à atuação pastoral. Houve mesmo uma mudança de paradigma. “Ele colocou fim à imagem de que só os centros economicamente importantes podem ser sedes cardinalícias”, diz o padre, também jesuíta, Adelson Araújo dos Santos, professor em Roma da Pontifícia Universidade Gregoriana.

Terminado o Consistório, Francisco viajou para a pequena cidade italiana de L’Aquila, na qual visitou o túmulo de Celestino V, primeiro pontífice a renunciar, em 1294. Esse ato já seria suficiente para despertar especulações em tons quase inaudíveis nos corredores do Vaticano. Aí veio a sua declaração dando ênfase ao critério segundo o qual, para um jesuíta, a saída de cena após o cumprimento da missão é questão de humildade. Mais: ele reuniu-se com trezentos cardeais de diversos países, a portas fechadas, como se fosse um pré-conclave de preparação para o conclave decisivo. Francisco é bem capaz de querer se despedir com festa, e por isso participou do primeiro Vitae Summit, evento de cúpula do Vaticano para incentivar a cultura: entre outros, reuniu o tenor italiano Andrea Bocelli, o ator norte-americano Denzel Washington e a instrumentista canadense Alessia Cara. Se em breve se consumar o adeus, hipótese que ele ainda nega estar em seus planos, será apenas mais um modesto e alegre gesto do trabalhador jesuíta. “Ele fez uma mudança estrutural na Igreja Católica e pode ser que considere a sua missão concluída”, diz o teólogo Gerson Leite de Moraes.

O cardeal da amazônia

Pela primeira vez no Brasil a Amazônia tem um cardeal. Trata-se do arcebispo de Manaus, dom Leonardo Ulrich Steiner, elevado ao cardinalato no Consistório Ordinário Público, realizado no Vaticano, no final da semana passada – juntamente com ele também se tornou cardeal, igualmente pelas mãos do papa Francisco, dom Paulo Cezar Costa, arcebispo de Brasília. Ambos comporão o Colégio de Cardeais (132 integrantes), que, entre outras responsabilidades, possui a de eleger pontífices. A nomeação de Steiner é um recado explícito de Francisco ao governo brasileiro: o Vaticano está alerta e desaprova a política governamental do País, que promove o desmatamento da floresta, descuida das etnias indígenas e incentiva atividades ilícitas de madeireiras e do garimpo.

TRABALHO ÁRDUO Dom Steiner: proteção aos indígenas e à floresta (Crédito:Andrew Medichini)

Leonardo Steiner tem 71 anos de idade, nasceu na cidade catarinense de Forquilha e é profundo conhecedor dos problemas e carências da região da Amazônia desde 2005. Foi nesse ano que o então papa João Paulo II o nomeou bispo para a prelazia de São Félix, no Mato Grosso. Em 2019 Francisco o fez arcebispo da Arquidiocese de Manaus. Steiner organizou, então, o Sínodo da Amazônia. Estava dado o sinal de que o Vaticano, com o jesuíta Francisco à frente, lutaria a seu modo (silencioso e ritualístico, mas eficiente) pela preservação da mata e na defesa das populações indígenas.