Toda sexta-feira à noite e mesmo com o bolso apertado, Andrea vai dançar tango em Buenos Aires, uma grande paixão que dá vida às milongas onde a música típica de Buenos Aires canta diariamente sobre o amor e as dificuldades financeiras.

“Na milonga você se sente abraçada pelo tango, uma conexão consigo mesmo e com os outros. É um investimento para o coração e o espírito”, disse à AFP Andrea Censabella, frequentadora assídua do La Tierra Invisível, localizado no bairro Parque Chacabuco.

Por uma entrada de 400 pesos (pouco mais de US$ 1, ou R$ 5,62, no câmbio atual), não há lustres de cristal nem enfeites no modesto espaço com piso de cerâmica, mas é possível dançar ao ritmo do piano e do bandoneón da dupla Tango Cañón, que dirige o local. A música ao vivo é um luxo que outras milongas, forçadas a demitir músicos e dançarinos, não podem pagar, devido ao aumento dos custos com uma inflação que ultrapassa os 100% ao ano.

“A milonga sobrevive, porque é uma necessidade. Houve uma crise e sempre haverá uma crise”, analisa Nicolás Di Lorenzo, pianista da dupla.

Esta necessidade se explica também no valor do tango, que cantava sobre o amor e as dificuldades das pessoas de sua época.

“Em suas letras, o tango sempre refletiu as crises e o sofrimento da classe trabalhadora”, contou o historiador Felipe Pigna à AFP.

“Quando você não tem fé/Nem a grama de ontem secando ao sol/Quando você quebra seus ‘tamangos’ (sapatos)/Procurando este dinheiro Que te faz comer”, escreveu Enrique Santos Discépolo em 1929 em seu tango “Yira-Yira”, nome de uma das milongas mais tradicionais de Buenos Aires.

Pigna ressalta a atualidade das letras do compositor.

“Os tangos sociais de Discépolo se atualizam a cada crise. Ouve-se tangos de quase 100 anos atrás que infelizmente ainda são válidos”, destacou ele.

– Milonga, o coração do tango –

“A milonga é o coração do tango porque é o lugar onde o tango respira, vive e bate todos os dias”, definiu Ana Bocutti, vice-presidente da Associação de Organizadores de Milongas.

Durante os sete dias da semana, Buenos Aires registra em média 30 milongas por noite. As opções são variadas, entre luxuosas, informais, tradicionais e LGBTQIA+, às adaptadas aos estilos e bolsos, como La otra, milonga gratuita que funciona na praça em frente ao Congresso Nacional.

Neste local, o dançarino de tango Valentín Rivetti, de 24 anos, ganha a vida dando aulas em troca da contribuição dos alunos.

“Estamos aqui para oferecer um espaço gratuito e inclusivo, onde possamos dançar tango sem ter que fazer um grande investimento”, afirmou, citando que recebe boas gorjetas de turistas que passam por ali.

Bocutti afirma que, com a queda de frequentadores nas milongas, uma das soluções foi diminuir o valor das entradas para atrair mais público.

Uma vez por semana, ela organiza a milonga Yira-Yira no clube El Nuevo Gricel, um dos mais tradicionais da cidade, com pista para 200 casais. Embora a entrada custe 2.000 pesos (cerca de US$ 5, ou R$ 28,10), muitos pagam a metade do valor dos clientes frequentes, outros entram de graça.

“Às vezes parece cheio, mas nem todo mundo paga, é para manter o ambiente vivo”, explicou ela.

Anualmente, o mês de agosto marca a Copa do Mundo de Tango, organizada pela prefeitura de Buenos Aires. Uma competição que revitaliza o local e atrai turistas estrangeiros.

Muitos contratam “táxi-dançarinos” por cerca de US$ 30 (cerca de R$ 148) a hora, um mercado que é “masculinizado pelas regras das milongas clássicas, em que o homem convida a mulher para dançar”, explicou Inés Muzzopapa, renomada dançarina e campeã do Mundial de 2007.

Laila Rezk, dançarina e proprietária do clube El Nuevo Gricel, destacou que a crise se soma à “incerteza deste ano eleitoral”, considerando a votação presidencial em 22 de outubro.

“Hoje todos estão cuidando do seu dinheiro, mas na Gricel não podemos reclamar, há outras milongas que estão passando muito mal”, disse.

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