As milícias vêm ganhando cada vez mais cobertura dos meios de comunicação, seja pelas operações policiais realizadas contra elas, prisões, mortes de supostos integrantes etc. No dia 13 de setembro, teve grande repercussão o Mapa Histórico dos Grupos Armados, que foi realizado pelo Instituto Fogo Cruzado em parceria com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismo, da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), no qual mostrou que as áreas dominadas por grupos paramilitares cresceu 387,3% entre os anos de 2006 e 2021 no Grande Rio.

Mas você, caro(a) leitor(a), sabe o que são as milícias? Como elas operam e quem faz parte? A IstoÉ apurou e traz essas respostas.

Em entrevista concedida ao portal, a diretora do Instituto Fogo Cruzado, Maria Isabel Couto, explica que “as milícias são grupos armados que se impõem por meio de várias estratégias. Uma delas é a violência, extorsão, ameaça contra moradores e uso da força para controlar uma área. Outra estratégia é o uso de autoridades policiais e/ou políticas. Há ainda uma terceira estratégia, cada vez mais importante, que é a financeira, pois o principal objetivo da milícia é sempre controlar o máximo de atividades comerciais possíveis em um local. Então, além da extorsão de moradores e comerciantes, eles assumem o controle das atividades como transporte, segurança, supermercados entre outras”.

De acordo com Maria Isabel, alguns estudiosos correlacionam o início das milícias com o período da ditadura militar, quando alguns grupos de extermínio começaram a atuar. “Mas o primeiro grupo tratado como milícia de fato foi a Liga da Justiça, no início dos anos 2000, formada pelos irmãos Natalino Guimarães e Jerominho. Ela era formada por um grupo de policiais de Campo Grande, que começaram a dominar a região. Jerominho, morto no último mês de agosto, foi condenado pela Justiça por fundar essa milícia. Depois, ela se desmembrou em várias outras, que hoje se espalharam por todo o estado do Rio de Janeiro.”

A partir desse momento, as primeiras milícias formadas eram compostas por agentes de segurança aposentados, expulsos ou que ainda estavam em atividade.

“A milícia foi tratada como ‘mal menor’ durante muito tempo, inclusive em declarações públicas de governantes e candidatos no início dos anos 2000. A ideia era de que esses milicianos, que eram agentes de segurança reformados, na ativa ou expulsos, poderiam controlar seus bairros e ‘limpar’ a presença de traficantes e assaltantes. Limpar, na gíria miliciana, significa matar. Mas essa teoria de mal menor nunca existiu na prática. O Mapa histórico dos Grupos Armados mostrou que as milícias se expandiram fortemente em locais onde antes não havia nenhum grupo armado controlando. Isso significa que os milicianos não expulsavam traficantes dos bairros. Pelo contrário. Em muitos bairros, o primeiro grupo armado a tomar o controle foi a própria milícia. E ela também não provê serviços que o Estado ou a iniciativa privada não têm interesse. Apenas toma posse de atividades econômicas de outros grupos e exerce ela mesma, para tirar lucro disso”, completa a diretora do Instituto Fogo Cruzado.

Modus operandi

As milícias que dominam algumas áreas do Grande Rio agem de um modo bem específico. Além do comércio, esses grupos armados controlam a venda do gás de cozinha, a cobrança dos aluguéis dos imóveis, a circulação das vans e a segurança dos locais que dominam.

“Hoje a milícia atua fortemente no setor de construção civil, grilando terras, drenando e roubando areia e construindo empreendimentos imobiliários”, informa Maria Isabel. Segundo ela, os grupos paramilitares se uniram aos traficantes para atuarem também na venda de entorpecentes. “Já houve, inclusive, venda de área para traficantes. Como as milícias são compostas tanto por agentes públicos quanto administração pública como um todo, eles têm acesso a informações que valem muito”, acrescenta.

Consequência do aumento da atuação da milícia

De acordo com o Mapa Histórico dos Grupos Armados, alguns episódios marcantes da história do Rio de Janeiro colaboram para contextualizar os dados atuais. São eles: a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das milícias feita em 2008 na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), que acarretou no indiciamento de 226 suspeitos de integrarem os grupos paramilitares; a presença das Unidades de Polícia Pacificadora; a crise socioeconômica, política e fiscal que o estado enfrentou entre os anos de 2014 e 2017; e a crise na gestão de segurança pública, que causou o fim da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESEG).

“É amplamente conhecida e comprovada a participação de agentes públicos e, principalmente, de policiais nos grupos paramilitares a que denominamos milícias. Não surpreende, portanto, que o processo de enfraquecimento da SESEG e concomitante autonomização das polícias coincida com o impressionante crescimento das milícias evidenciado a partir do triênio 2017/2019. Com as polícias atuando a salvo de controles democráticos e de qualquer necessidade de prestação de contas à sociedade, a extensão territorial sob o controle de grupos armados, em particular dos grupos milicianos, cresceu vertiginosamente”, afirma a diretora do Instituto Fogo Cruzado.

As milícias estão presentes apenas no Rio de Janeiro?

Ao ser questionada sobre a possibilidade de existir milícias nos demais estados, a diretora do Instituto Fogo Cruzado afirma que há evidências de grupos paramilitares em pelo menos 17 unidades da Federação. “Assim como no Rio de Janeiro, as milícias atuam com a justificativa de ser uma opção alternativa, quando o Estado não zela integralmente pela segurança da população.”

Ainda de acordo com ela, as milícias, no geral, operam de modo similar. Existem algumas particularidades, como em Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde “as milícias atuam como força de combate contratadas por fazendeiros para desocupações e ataques contra populações indígenas. Em outros estados, as milícias estão envolvidas com especulação imobiliária e prestação de serviços, como venda de gás e instalação de sinais clandestinos de TV a cabo”, finaliza.