Uche chegou procedente do sul à grande cidade de Kano, norte da Nigéria, em meios de transporte lotados e por um trajeto repleto de buracos. Há quatro dias, aguarda, e seu périplo em direção à Europa ainda nem teve início.

Seu caminho está traçado com antecedência: chegar a Agadez, a cidade de Níger próxima ao Saara e viajar de caminhão até Sabha, sudoeste da Líbia. Desta cidade pretende seguir até Trípoli e, depois, para Itália ou Espanha. Caso tudo corra bem.

Mas logo no início da viagem surgem os problemas. O traficante que deveria ajudar em sua passagem pela fronteira foi detido.

“Sua casa estava sob vigilância”, conta Uche, eletricista. No momento ele está bloqueado em Kano, no bairro cristão da cidade, onde encontrou um amigo que ofereceu abrigo.

Mas Uche não desanima com o primeiro contratempo e está decidido a seguir seu caminho.

“Vou dar voltas até encontrar alguém que me leve a Agadez”, explica o jovem à AFP.

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Sabon Gari é o bairro cristão de Kano, capital milenar do islã. É conhecido por seus mercados, edifícios lotados, bares onde se consome muita cerveja e os prostíbulos.

Nos últimos anos, Sabon Gari também se tornou alvo da polícia, que persegue os traficantes de pessoas. Kano fica perigosamente próxima da Europa.

Entre 1 de janeiro e 24 de maio, mais de 60.000 pessoas chegaram a Europa por via marítima, segundo a Organização Internacional de Migrações (OIM).

O número é muito inferior ao registrado no mesmo período do ano passado, quando 193.000 migrantes chegaram às costas italianas, gregas, cipriotas ou espanholas. As viagens a partir da Síria deixaram de ser tão frequentes desde que os acordos com a Turquia conseguiram conter o fluxo.

Mas a rota marítima entre o norte da África e o sul da Europa não dá trégua. Mais de 41.000 pessoas partiram do continente, através da Líbia, e entraram na Itália em embarcações precárias (contra pouco menos de 27.000 ano passado).

O número de mortos aumentou tragicamente. Um total de 982 pessoas morreram entre janeiro e maio do ano passado. Neste ano o número chega a 1.442. Os dados contabilizam apenas os corpos encontrados.

– Pressão europeia –

A migração africana para a Europa não é um fenômeno novo e representa uma ínfima parte das migrações mundiais: mais de 90% permanecem em seu continente.

Durante muito tempo, os políticos fizeram vista grossa ao fenômeno, que representa uma importante fonte de recursos para o continente africano, graças ao dinheiro enviado aos parentes que permanecem na África.

O eleitorado europeu, no entanto, se considera em perigo e expressa cada vez mais o descontentamento.

A União Europeia (UE) investiu em um fundo de 1,8 bilhão de euros para projetos de desenvolvimento em países que se comprometam a lutar contra a emigração ilegal.


Há negociações com representantes de etnias nômades que controlam as rotas do deserto e centros de detenção e albergues para pessoas repatriadas foram construídos.

A Nigéria, principal país de saídas na África, adotou uma política contra a emigração ilegal. Níger condena a 30 anos de prisão os traficantes de migrantes e sua polícia realiza operações frequentes nos “guetos”, os locais onde se reúnem os candidatos a deixar o continente.

Richard Danziger, diretor da OIM para a África Ocidental e Central, percebe “uma importante mudança de atitude e nas políticas” dos governos africanos.

“Existe ainda uma verdadeira consciência do lado humano, os mortos no Mediterrâneo ou no deserto não são mais aceitáveis”, afirma Danziger.

Em colaboração com os países de origem, a OIM acelera as repatriações voluntárias de pessoas detidas na Líbia. Muitas estão cansadas, em alguns casos feridas e traumatizadas. Mas outras pensam apenas em uma nova tentativa.

E apesar de uma consciência maior, os países da África Ocidental dispõem de poucos recursos para implementar uma verdadeira legislação contra as saídas de seus cidadãos.

A Agência Nigeriana de Proibição aos Maus-Tratos de Pessoas (NAPTIP) não possui funcionários suficientes ou verba. Em um país abalado pelos conflitos, onde o nível de saúde é mínimo e as escolas carecem de professores, há outras prioridades.

O sistema de vigilância, gangrenado por uma corrupção generalizada, tampouco ajuda a combater o tráfico de pessoas. Alguns comboios de caminhões partem com escolta militar e em postos de controle ao longo do trajeto soldados cobram pedágios ilegais.

Desde a morte de Muamar Khadafi em 2011 após uma ofensiva militar ocidental, a Líbia não conta com um Estado de direito. O ditador líbio aceitava desempenhar o papel de última fortaleza de proteção da Europa em troca de grandes quantias de dinheiro. Atualmente, ex-agentes da polícia se transformaram em capitães de embarcações precárias.

– Sistema criminoso –

No ano passado, mais de 37.000 nigerianos chegaram a Itália e Grécia de maneira ilegal: quase três vezes a mais que o segundo país de origem, Guiné.

Assim como Uche, eles fogem de uma economia em recessão pela queda dos preços do petróleo, fatal para o principal produtor do continente, a inflação, desemprego, pobreza e fala de infraestruturas.


“A vida aqui é difícil com a crise econômica. Acho que poso ter mais oportunidades e uma vida melhor na Europa”, declara Uche.

A Europol, departamento europeu de polícia, admite que há poucas possibilidades de deter a imigração clandestina alimentada por conflitos ou pelas desigualdades entre Norte e Sul.

Este tipo de emigração também alimenta um sistema criminoso que teria contribuído com até seis bilhões de euros às redes mafiosas, segundo a Europol.

Ahmad, um jovem nigeriano dirigia um caminhão na rota entre Agadez e Sabha, no qual transportava em cada viagem 30 nigerianos, malineses, togoleses ou marfinenses.

O caminhão realizava o trajeto de nove dias em duas ocasiões por mês. Cada passageiro pagava 50.000 narais (150 euros), quase três vezes o salário mínimo na Nigéria.

“Tive uma vida muito boa”, admite. “Construí uma casa e comprei outras coisas. Mas agora as coisas mudaram e temos as autoridades em cima”.

Patrulhas aéreas percorrem o deserto, explica Ahmad, que não entende o que está errado em sua atividade.

“Fazemos apenas o que nos pedem: transportamos”, disse.

As investigações nas rotas do Saara e do Sahel mostram, no entanto, que os traficantes de migrantes geralmente estão envolvidos no tráfico de drogas e armas.

Sem outra fonte de recursos e sufocadas pelos cartéis, estas regiões, que já são as mais pobres do mundo, poderiam cair no extremismo religioso. A pobreza e a falta de educação são os principais fatores de recrutamento de grupos como Boko Haram e AQMI (Al-Qaeda no Magreb Islâmico), muito ativos na área.

Além das políticas de repressão, Fabrice Leggeri, diretor da agência de vigilância das fronteiras europeias, Frontex, defende a intensificação das mensagens preventivas.

“Acredito que a mensagem que devemos enviar a todos os países com aspirantes a emigrar para a Europa é que se trata de um engano. Não é o paraíso que os traficantes descrevem”.

Uma mensagem que Uche se nega a escutar. “As pessoas admitem que a rota é perigosa, mas estão dispostas a tentar”, afirma.

“Muitos conseguiram. Por quê não eu? É preciso correr riscos na vida”.

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