Exibido no último dia da competição do Festival de Cannes, em maio, havia a expectativa de que A Árvore dos Frutos Selvagens fosse agraciado pelo júri com um prêmio importante (quem sabe a Palma de Ouro?). Seria a segunda do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan – a primeira foi com Winter Sleep, em 2014. Ceylan tem uma assinatura que o cinéfilo identifica logo.

Um olho para a beleza – e para os céus borrascosos -, um gosto acentuado pelo plano-sequência e longos diálogos que são, ao mesmo tempo, discussões humanistas e filosóficas. A literatura com frequência está no centro do seu cinema. O filho pródigo que volta para casa em seu novo filme graduou-se, mas não tem emprego. Não quer prestar concurso para o serviço público. Quer dinheiro para publicar seu primeiro livro, mas a família está endividada. Reencontra a antiga namorada, o pai – afloram velhos conflitos. Busca reencontrar a fé no Profeta – e dialoga com dois imames para expressar/tirar dúvidas.

Os diálogos intensos sempre dão a impressão de que o cinema de Ceylan está embasado na literatura, e até no teatro. Os planos contínuos introduzem a questão do tempo. É outono e, enquanto Sinan fala com a ex, debaixo daquela árvore, caem as folhas douradas. Eles abrem o coração, mas de alguma forma ainda estão secretando suas mais profundas emoções. A Árvore dos Frutos Selvagens é da mesma estatura de Leto/Verão, do russo Kirill Serebrennikov.

Se o júri presidido por Cate Blanchett tivesse feito a coisa certa, a Palma de Ouro seria de algum deles. Existem críticos que discordam. Gostariam de vê-la atribuída a Em Chamas, do sul-coreano Lee Chang-dong, que também tem o pé na literatura. Um aspirante a escritor, a mulher que o seduz e, de repente, o envolver num triângulo. Ela desaparece, o que é realidade, o que é ficção?

Em Chamas terá sua primeira exibição na sexta, 26, no Caixa Belas Artes 1, às 20h30. A Árvore passa nesta terça, às 19h45, no CineSala. A 42ª Mostra tem um upgrade na sua programação. Entre os grandes filmes, há um Jean-Luc Godard, Imagem e Palavra, também nesta terça, às 22h10, na Reserva Cultural. Todo mundo fala maravilhas de Roma, do mexicano Alfonso Cuarón, que recebeu o Leão de Ouro em Veneza e será o filme de encerramento. E há o outro mexicano, Carlos Reygadas. Disputa com o Ceylan o título de melhor dessa Mostra. Nuestro Tiempo, Nosso Tempo, ainda não tem distribuição assegurada no Brasil. Passa nesta terça, às 20h30, no Cinearte Petrobrás 1. Reygadas tem sido uma presença frequente na Mostra com seus (grandes) filmes. É ousado, basta lembrar de Japan, Batalha no Céu, Luz Silenciosa, Revolución e Luz Depois das Trevas. Seu cinema não é narrativo, no sentido tradicional. Opera por rupturas.

Nuestro Tiempo começa com uma brincadeira de crianças e adolescentes no barro. Demora um tempo antes que o espectador consiga identificar os protagonistas, e mesmo o tema do filme. É o nosso tempo, certo, mas retratado como? O lugar é uma ‘hacienda’, fazenda, de criação de touros. Os animais são selvagens. Um dos touros, ao ser alimentado, ataca seu treinador, mata uma mula que era o xodó do dono. Começa a surgir o casal protagonista.

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Os donos da fazenda. O filho mais velho está indo para a América, para jogar numa universidade. O pai é poeta. A mãe é uma destacada patrona das artes. A narrativa ainda avança por rupturas. Há um concerto de címbalos. É um momento mágico. Enquanto a artista toca, a câmera investiga o local da apresentação, ganha o terraço, de onde se descortina a cidade. Bem mais tarde, a câmera voa num avião que sobrevoa a cidade e finalmente aterrissa. O mundo, seja o deserto ou a cidade, está sempre de fundo. A natureza, com o furor das águas – tempestades -, contribui para dar um sentido cósmico ao drama humano.

Justamente o drama humano, o casal. Sinal dos tempos, marido e mulher têm um acordo de sexo livre, que parece funcionar. Parece, porque de repente a mulher atravessa uma crise de identidade que o marido identifica como se ela estivesse apaixonada pelo amante. Ele surta com a ‘traição’. O casamento implode. Há um elo, não sexual, entre o marido e o amante que faz com que a mulher se sinta manipulada. À maneira de Stanley Kubrick em 2001, mas sem nada a ver com a epopeia futurista, o mundo macro e o micro se confundem. Como em Terrence Malick, A Árvore da Vida, a natureza participa. Os touros voltam a enfrentar-se. Todas essas informações, aparentemente dispersas, precisam ser ordenadas pelo espectador em seu inconsciente. Reygadas conseguiu – outro grande filme, um marco do cinema latino contemporâneo. Do cinema do nosso tempo.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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