O Brasil registrou 58,3 mil casos de estupro de crianças e adolescentes de até 14 anos entre 2020 e 2022. Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), 48% dessas vítimas sofreram a agressão mais de uma vez antes de serem atendidas no sistema de saúde.

Os registros revelam um longo ciclo de violência que afeta principalmente meninas. Foram cerca de 24,9 mil casos de estupro repetido de crianças e adolescentes do sexo feminino, o que corresponde a 88% de todas as agressões notificadas como recorrentes. Mais de 60% delas eram negras.

No Sinan, essas informações são coletadas compulsoriamente no momento em que a criança é atendida numa unidade de saúde. Se considerados outros tipos de violência sexual preenchidos nas fichas de notificação, como assédio, exploração, atentado violento ao pudor e pornografia infantil, o número de meninas que foram mais de uma vez vítimas do mesmo crime sobe para 40,8 mil.

Já nas informações disponíveis no Disque 100, compiladas pelo Centro Marista de Defesa da Infância, a agressão foi denunciada como repetida a cada 7 de 10 registros de violência sexual contra crianças e adolescentes no período de 2020 a 2023. O serviço coleta denúncias anônimas de violações de direitos humanos.

A dificuldade de interromper a violência

Além de serem as principais vítimas de estupro, meninas de até 14 anos também são as maiores prejudicadas pelo projeto de lei discutido na Câmara dos Deputados que quer equiparar o aborto após 22 semanas ao crime de homicídio.

Como a DW mostrou, o acesso precoce ao sistema de saúde em caso de gravidez, por exemplo, se torna uma saga principalmente quando a violência acontece dentro de casa. Segundo o Ministério das Mulheres, 68% dos estupros de crianças em 2022 aconteceram na residência da vítima. Nessas situações, a própria família se torna um obstáculo para a interrupção do ciclo de violência.

Para a advogada do Instituto Alana, Mariana Zan, isso faz com que um grupo muito grande de meninas nem mesmo consiga acesso aos serviços de proteção, o que se reflete no prolongamento da violência. “O ambiente doméstico é violento, e é fácil manipular a vítima para dificultar o acesso aos meios de denúncia”, afirma.

A isso se soma a relação da criança com o agressor, o sentimento de culpa e até a dificuldade de ser ouvida por outros adultos. “Todos esses elementos complexificam a questão a ponto de muitas vezes a criança não saber se a agressão é uma violência ou não.”

Rede de proteção

Em qualquer cenário, o aumento de casos registrados pode refletir não apenas o aumento da violência, mas também uma maior capacidade de registro dos mecanismos de denúncia, ressalta Zan. Isso aconteceu em especial após a pandemia de covid-19, quando as crianças voltaram a ocupar espaços como escolas, onde os casos são percebidos com maior frequência por profissionais da rede.

“Precisamos de políticas públicas comprometidas com a prevenção e resposta à violência e de uma comunidade que seja capaz de identificar quando uma violência está acontecendo e seja capaz de fazer o encaminhamento”, relata.

O secretário executivo da Coalizão Brasileira pelo Fim da Violência contra Crianças e Adolescentes, Lucas Ramos Lopes, entende que essa realidade reforça a necessidade de políticas públicas que atuem na integração entre os serviços de saúde e educação.

“É preciso uma conexão maior entre a política de educação e o sistema de saúde. A chance de a criança acessar o sistema de saúde ou qualquer outro passa necessariamente pela escola. Não existe outro serviço que permita essa entrada do Estado”, afirma.

Para Lopes, a escola é um local privilegiado para o Estado executar políticas de prevenção à violência, com foco no ambiente familiar.

“[O índice de violência familiar] não é um dado leviano. Hoje não temos uma estratégia nacional focada na prevenção à violência sexual no contexto intrafamiliar. O Brasil não tem cruzado dados para informar suas políticas de prevenção.”