Manhã em Los Angeles. “Nuvens baixas, típico brilho do mês de junho. Temos 16 graus e vamos chegar aos 25 ao longo do dia. O céu azul e raios de sol dourados ficarão mais firmes assim que esse cinza for embora. Tenha um bom dia”. À primeira vista, não há nada mais normal do que um boletim de previsão de tempo. A não ser, claro, quando ele é apresentado por David Lynch, o homem que fez do cinema surrealista uma arte pop.

QUEM MATOU LAURA PALMER? “Twin Peaks”: história sombria e sucesso de audiência (Crédito:Divulgação)

A pergunta “por que um cineasta apresenta previsões do tempo?” só faz sentido para quem busca lógica nas obras de Lynch. Desista: não há. Mestre dos sonhos, senhor do subconsciente, o diretor “cult” de 74 anos construiu a carreira com enredos abstratos e histórias perturbadoras. Geniais para alguns; incompreensíveis, para outros. O que é unânime para todos, no entanto, é sua capacidade literal de transformar sonhos e pesadelos em realidade. Enquanto Salvador Dali desfilava seu pincel pela tela deixando para trás relógios derretidos e memórias persistentes, David Lynch faz exatamente a mesma coisa, mas com sua câmera. Captura imagens que só existem em algum lugar obscuro de nossas mentes e lhes dá vida, transformando-as em cenas reais, com atores, locações e objetos. Indagado sobre a razão que o levou a se tornar um diretor de cinema, foi surpreendentemente objetivo: “eu queria ver os quadros se mexendo”.

O surrealismo foi um movimento artístico criado nos anos 1920 na Europa por nomes como o escritor francês André Breton e o cineasta Luis Buñuel. O filme mais famoso do espanhol, “Cão Andaluz”, inclusive, é um bom prenúncio do caminho que Lynch tomaria décadas mais tarde, com mais recursos tecnológicos a seu dispor. Mesmo sendo conhecido por esse estilo fora do convencional, David Lynch alcançou diversos sucessos de bilheteria. “Homem Elefante”, “Veludo Azul”, “Coração Selvagem”, “Estrada Perdida”, “Mulholland Drive – Cidade dos Sonhos” são alguns deles. Na quarentena, sem poder filmar algo novo, ele tem aproveitado para desenvolver uma série de projetos originais, tão diferentes entre si que parecem ter sido criados pelos personagens bizarros de seus filmes. Todos, porém, têm uma coisa em comum: são “Lynchianos”, adjetivo que permeia suas obras desde sua estreia com “Eraserhead”, em 1977.

Em seu canal do Youtube, o “David Lynch Theatre”, há um diário visual batizado de “What is David Working on Today?” (“Em que David está trabalhando hoje?”). São vídeos caseiros onde o diretor mostra seu dia a dia no ateliê, em meio a quadros, litografias e criações em madeira. São momentos típicos de um homem de meia-idade, mas que ganham milhares de visualizações por se tratar de David Lynch. É paradoxal constatar que sua rotina é tão “normal” – apesar da sensação de que, a qualquer momento, alguma coisa estranha pode acontecer. No ateliê há também quadros em andamento – sim, Lynch, também é pintor. E fotógrafo, escritor, músico, inventor, uma usina de projetos criativos. “Gostaria de ter um outdoor com a palavra ‘projeto’ estampada”, disse, em vídeo publicado em seu site.

Há poucos filmes de David Lynch nas plataformas de streaming. Na Netflix, há um curta-metragem que pode servir de iniciação ao seu trabalho: “What did Jack do?” (O que Jack fez?) traz uma história divertida e estranha onde Lynch interpreta um detetive que interroga um macaco acusado de assassinato em uma estação de trem.
Como ele mesmo se define, Lynch é um homem de projetos. E eles são diversos: lançou uma marca de café, uma de suas obsessões; criou um workshop para a plataforma online Masterclass, onde fala sobre cinema e dá dicas sobre seu processo criativo; é dono de uma casa noturna em Paris que mistura sala de cinema de arte, palco para shows e bar, o clube “Silencio”. Lynch também já publicou diversos livros, a maioria como fotógrafo. O mais recente é “Nudes”, com fotos de mulheres nuas. Seu livro mais popular, no entanto, é “Catching de Big Fish” (“Pegando o Peixe Grande – Meditação, Consciência e Criatividade”), onde aborda seu assunto favorito: a meditação transcendental. Não é apenas um adepto, mas um embaixador da escola popularizada pelo guru Maharishi Mahesh Yogi, o mesmo que introduziu os Beatles à cultura indiana nos anos 1960. Lynch defende a meditação como técnica geradora de ideias criativas, crença que compartilha com artistas como Paul McCartney e Jerry Seinfeld, entre outros.

Revolução na TV

O grande marco da carreira de Lynch, paradoxalmente, não se deu no cinema, mas na TV. Exibida há 30 anos – nove anos antes de “Os Sopranos” – a série “Twin Peaks” revolucionou a televisão americana com um formato que antecipou em décadas o estilo presente hoje nas plataformas de streaming. Usando uma premissa bastante convencional, “quem matou Laura Palmer?”, Lynch foi cativando o público e inserindo aos poucos elementos cada vez mais sombrios. Quando os executivos perceberam, já era tarde demais: a história sobre o assassinato de uma garota em uma cidadezinha americana bateu recordes de audiência em todo o mundo, mesmo com personagens que falavam ao contrário e apareciam do nada em salas de veludo vermelho. Era um mundo estranho, mas as pessoas amaram. Em 2017, David Lynch voltou àquele mundo na série “Twin Peaks – O Retorno”, disponível na Netflix. Foi sua última incursão cinematográfica em formato convencional – se é que podemos chamar de “convencional” alguma coisa que sai da mente de David Lynch.

Você tem uma pergunta para David lynch?
“Não consigo lembrar dos meus sonhos”

Em seu canal do Youtube, o cineasta respondeu a perguntas enviadas por internautas. Abaixo, alguns destaques:

Divulgação

Por que você divulga boletins meteorológicos diariamente?
As pessoas se interessam pelo clima. É bom saber qual será a temperatura do dia e como vai estar o céu e o sol.

Você usa os sonhos como inspiração?
Eu não costumo me lembrar dos meus sonhos e eles têm pouco impacto sobre o meu trabalho. Gosto de ficar sentado em uma poltrona confortável e sonhar acordado. É uma boa maneira de gerar ideias.

Como você se tornou um cineasta?
Eu queria ver os quadros se mexendo.

Qual é o som que te traz mais alegria?
O som é um dos cinco sentidos mágicos. A forma como a vibração do ar entra em nossos ouvidos e viaja até nosso cérebro, provocando emoções… Adoro o som do vento pela manhã.

O que você pensa sobre a pandemia?
O mundo passa por uma transição. Precisamos superar os tempos sombrios para alcançarmos um lugar melhor. A velha maneira de fazer as coisas está dando lugar a uma nova maneira. Ainda viveremos grandes momentos. Espero que seja o fim de todo o sofrimento e negatividade.

Qual é o projeto do qual você mais tem orgulho?
Tenho orgulho de todos, com exceção de “Duna”. Não é bem orgulho, mas um prazer com o trabalho. Tenho sorte de poder fazer o que gosto.