A descabida discussão sobre a liberação de cultos religiosos em meio à pior fase da pandemia esconde, nos bastidores, a disputa pela próxima vaga a ser aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) em julho, com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello. Com a saída do ministro, Bolsonaro terá o direito de escolher o segundo membro da Corte desde o início de seu mandato e os candidatos ao cargo se esmeram em demonstrar sua devoção para chamar a atenção do ex-capitão, que já anunciou que o indicado será alguém “terrivelmente evangélico”. Para agradar o mandatário, dois dos principais pretendentes se portam como súditos fiéis e se colocam de joelhos diante de Messias Bolsonaro para orar pela obtenção da graça: de um lado, o ministro da Advogacia-Geral da União (AGU), André Mendonça, e do outro, o procurador-geral da República, Augusto Aras.

Messias, me escolhe
A FORÇA DO DÍZIMO Pastores ligados a Bolsonaro, como Silas Malafaia, querem a liberação dos cultos para aumentar a arrecadação (Crédito:Divulgação)

A indicação de mais um aliado como integrante do STF faz parte do projeto autoritário de Bolsonaro, que tem o desejo de ampliar sua influência no tribunal. O plano começou a ser posto em prática em novembro do ano passado, quando o ex-capitão nomeou Kassio Nunes Marques como ministro. Ele foi autor da liminar estapafúrdia que autorizou a reabertura de templos religiosos mesmo diante da explosão das mortes pelo coronavírus, da falta de vacinas e do colapso na Saúde. Em sessão na quinta-feira, 8, a tendência era do STF derrubar a liminar de Marques, obrigando as igrejas a voltarem a fechar suas portas para cultos presenciais. Aliás, como já havia decidido o ministro Gilmar Mendes, que um dia antes votou pela proibição aos cultos e criticou tanto a decisão de Marques, como o posicionamento bajulador de Mendonça e Aras em favor da tese bolsonarista de abrir as igrejas.

Messias, me escolhe
Além dos requisitos de “notável saber jurídico e reputação ilibada”, as indicações do presidente para ministro do STF exigem independência e atitude de estadista. O ideal é que Bolsonaro prefira um “terrivelmente constitucionalista”
Heleno Torres, jurista (Crédito:Marco Ankosqui)

Na disputa pela cadeira de Mello, contudo, Mendonça sai na frente. Pastor auxiliar da Igreja Presbiteriana do Brasil, o ministro da AGU é visto com bons olhos por líderes religiosos influentes. Embora favorito, ele se esmera em mostrar serviço ao capitão. Seu movimento mais recente foi dado na quinta-feira, 1, quando pediu que o STF revogasse as medidas restritivas que impediam a reabertura das igrejas. Ele protocolou o pedido pouco depois de Aras, seu adversário na corrida pelo STF, ter feito exatamente o mesmo. O nome de Mendonça tem boa aceitação entre os ministros do STF, mas passou a sofrer resistências depois que ele, quando ainda era ministro da Justiça, determinou a abertura de uma série de inquéritos para intimidar críticos ao mandatário com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), criada durante a ditadura militar. O mesmo desgaste ocorre no Congresso.“É natural que o nome de Mendonça encontre mais dificuldades agora. Um ministro da Justiça não deveria se prestar àquele papel”, afirmou um líder da Câmara que pertence à base de apoio do governo. Para marcar posição e fustigar o rival, Aras mandou seu homem de confiança, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pedir que Mendonça explique os motivos que o levaram a iniciar essas investigações.

Em desvantagem, Aras também vem tentando se cacifar na disputa pela cadeira no STF. Para ganhar a predileção do mandatário, ele se aproxima dos evangélicos e procura conquistar a admiração dos outros integrantes da Corte. Alguns deles, no entanto, confidenciam que o nome de Aras provoca incômodo por “participar de jogos políticos” e não ter “princípios jurídicos” necessários para o cargo. O primeiro passo dado por Aras foi em março, quando se reuniu com Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e nome próximo ao presidente, e com Abner Ferreira, bispo da Assembleia de Deus de Madureira. Aproveitou a ocasião, inclusive, para se manifestar contrário ao fechamento das igrejas durante a pandemia. Integrantes influentes da bancada evangélica da Câmara, porém, acham que essa aproximação é inútil: “Aras é um excelente nome para o STF, mas não é evangélico”, afirmou um deputado. Humberto Martins, do STJ, corre por fora.

“Juiz covarde”

O alinhamento de um ministro aos interesses de Bolsonaro não é visto com bons olhos no STF. Nunes Marques que o diga. Após proferir a liminar liberando os cultos, o ministro bolsonarista ficou isolado na Corte. Nas rodas de conversa do tribunal, suas decisões são classificadas como “tecnicamente frágeis”. Um dos membros mais críticos a ele até agora tem sido Gilmar Mendes. Logo depois da liminar que determinava a reabertura das igrejas, Mendes escancarou seu mal-estar com o colega e tomou uma decisão contrária em um processo semelhante ao analisado pelo aliado do presidente. Tratava-se de uma ação do PSD contra decreto do governador de São Paulo, João Doria, que proibia atividades religiosas presenciais. Ao tomar essa medida, Mendes obrigou que o presidente do STF, Luiz Fux, levasse a discussão sobre o funcionamento de templos religiosos na pandemia para o plenário. Com isso, o mandatário e seu ministro preposto no tribunal acabaram derrotos na Corte.

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NA RETA FINAL Marco Aurélio fez cirurgia para retirar um carcinoma (câncer de pele) e usou curativo na cabeça, mas passa bem (Crédito:Divulgação)

No mês passado, Mendes já tinha se desentendido com Marques no julgamento em que a Segunda Turma do Supremo concluiu que o então juiz da Lava Jato, Sergio Moro, foi parcial ao condenar o ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá. Marques votou contra o petista, provável adversário do capitão nas eleições de 2022. Presidente do colegiado, Mendes reagiu ao voto do colega. “Não há salvação para juiz covarde. A combinação de ação entre o Ministério Público e o juiz encontra guarida em algum texto da Constituição? Isso tem a ver com garantismo? Nem aqui nem no Piauí”, rebateu, em referência ao estado natal de Marques. Lula acabou recuperando os direitos políticos e hoje, segundo as pesquisas, é o adversário mais competitivo do capitão.

Desde que assumiu a vaga no STF, Nunes Marques já tomou outras decisões que revelaram seu alinhamento aos anseios do mandatário e aumentaram sua rejeição na Corte. Em dezembro, ele impôs uma série de empecilhos para instituir a vacinação obrigatória contra a Covid durante sessão em plenário. Fora isso, votou pelo esvaziamento da Lei da Ficha Limpa e defendeu a redução do período de inelegibilidade de políticos condenados criminalmente com base nessa legislação. Em outro caso, Nunes Marques autorizou a pesca de arrasto (feita com redes no mar e em rios) no litoral do Rio Grande do Sul, com direito a receber até congratulações de Bolsonaro. “Parabéns aí ao nosso ministro Kassio por essa feliz liminar. Vamos pescar, pessoal!”, disse o capitão em vídeo divulgado nas redes sociais em dezembro de 2020. Bolsonaro quer um STF para chamar de seu.