Depois da tentativa de golpe de Estado rapidamente seguida de meia-volta no sábado, 24, promovida pelo paramilitar Yevgeny Prigozhin e seu batalhão Wagner, ficou evidenciado o racha no Kremlin, com movimentação de bastidores acelerada pela proximidade das eleições presidenciais de 2024. Cresce a rixa entre líderes militares, que estão divididos ao menos em dois blocos: os “pragmáticos”, que defendem a conciliação, e os estridentes “falcões”, que querem recrudescer ataques diante das dificuldades da guerra na Ucrânia. Nas horas dramáticas do dia 24, Vladímir Putin pareceu acuado como nunca em mais de duas décadas de poder (foi sempre o homem forte ocupando os cargos de primeiro-ministro e presidente). Essa tensão entre os militares, na verdade, é atiçada pelo próprio Putin, que sempre se beneficiou da divisão entre seus subordinados.

Sobre o “meio-golpe”, são inúmeras as dúvidas. Tanto que líderes mundiais se limitaram a falar entre si apenas sobre riscos nucleares do armamento enviado à Bielo-Rússia (o presidente americano Joe Biden conversou com representantes da França, Alemanha e Reino Unido).

De resto, comentários divulgados — mesmo da parte da China — se mostraram apenas genéricos. Enquanto isso, a Ucrânia enxerga “uma janela de oportunidade” pelo vácuo aberto no front com o sumiço dos mercenários do Wagner (Andriy Yermak, conselheiro do presidente Volodymyr Zelensky, disse: “A contagem regressiva começou”).

Putin sob pressão
Serguei Schoigu, ministro da Defesa, e Yevgeny Prigozhin, dono do Wagner, partiram para o confronto aberto (Crédito:Egor ALEEV/POOL/AFP; Handout/TELEGRAM/@concordgroup_official/AFP)

Ambição por poder e dinheiro é o ponto em comum dos personagens de grupos russos rivais, dentro ou fora das Forças Armadas. O Wagner, encabeçado por Prigozhin e que foi assim chamado em “honra” ao compositor preferido de Hitler, teria entre 25 mil e 40 mil comandados (10 mil contratados e os outros, criminosos tirados das prisões russas para combater em troca da remissão das penas) e concorre com pelo menos dez outros grupos mercenários na Rússia. O Patriot, seu maior rival, pertence nada menos que ao arqui-inimigo de Prigozhin: o ministro Serguei Schoigu, da Defesa, que faz dupla com Valery Gerasimov, chefe das Forças Armadas.

Outro que ressurgiu no cenário é Serguei Surovikin, o “General Armagedon”, há meses colocado na geladeira pelo círculo mais próximo de Putin. Para Prigozhin, seria o substituto ideal de Gerasimov, ficando o Ministério da Defesa para Mikhail Mizintsev, o “Açougueiro de Mariúpol”, rebaixado e depois dispensado do Exército russo, que se tornou vice-comandante do Wagner.

Alexei Dyumin, ex-guarda-costas de Putin e vice da Defesa, é outra peça que aparece das sombras e teria sido o verdadeiro responsável pelo acordo entre Putin e Prigozhin, para o recuo da tentativa de golpe, e não Aleksandr Lukashenko, como o presidente bielorrusso se autoproclama.

Roberto Goulart Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da UnB, observa que as informações vazadas ficam mais no campo factual do que no analítico. “Putin falou, por exemplo, que o batalhão Wagner tem três alternativas: ou depõe armas, ou se integra ao Exército russo, ou aceita o exílio na Bielo-Rússia”. Mas… “Mercenários passariam a ganhar soldo? Que lealdade se espera de Prigozhin, que opera no submundo? E se houve traição, por que ele ainda não foi eliminado por Putin?”

“É estranho um Estado autocrata como a Rússia passar por uma humilhação dessas”.
Roberto Goulart Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da UnB

Mercenários x Putin: o buraco da crise é mais embaixo
Batalhão Wagner tomou a cidade russa de Rostov e partiu para Moscou, mas recuou a meio caminho (Crédito: Stringer / Afp)

Fortunas em jogo

Prigozhin está, ou esteve, no comando do batalhão Wagner, formado ainda em 2014 sob o pretexto da invasão da Crimeia, com apoio do GRU, o braço de inteligência do Ministério da Defesa russo.

Foi o ponto de virada do criminoso, que chegou a fornecer merendas escolares e marmitas ao Exército, até se tornar chef da cozinha do Kremlin.

Daí, pulou para dono de grupo miliciano, que atuou ao lado de soldados russos regulares na Síria e na África (ao criar uma “fábrica de trolls”, teria ainda contribuído para a eleição do presidente americano Donald Trump em 2016).

Para as nações africanas, fornece segurança, treinamento militar, armas; desestabiliza governos ou assassina opositores. E lucra. Muito. Apenas com mineração de ouro na República Centro-Africana, somou perto de US$ 1 bilhão em 2022, segundo fontes americanas.

Assim, há toda uma movimentação por trás da tomada de Rostov, cidade russa ao sul do país, e da marcha do Wagner para Moscou, até o recuo no dia 24 em Voronezh, já na metade do caminho. O gatilho do golpe “evaporado” foi o decreto de Shoigu, de 10 de junho, que obrigava a todos os grupos “voluntários” a assinarem contrato com o governo e se integrarem às forças regulares — o que deveria ser feito até 1º de julho. Prigozhin se recusou a abrir mão de seus lucros. Disse que ia “até o fim”, mas voltou no meio do caminho. Putin primeiro discursou falando em traição, mas depois “permitiu o exílio” de comandante e comandados na Bielo-Rússia.

O que se depreende desse último episódio, o mais dramático desde os anos 1990 na Rússia, é que a luta interna pelo poder deixou de ser velada. E que, como preveem analistas, com tantos grupos paramilitares muito bem armados depois de um cessar-fogo na Ucrânia, tanto russos como ucranianos podem entrar em guerra civil.