Pela anatomia das regras do futebol, pode-se dizer que braços e mãos são a mesma coisa – e devem guardar, à exceção dos goleiros, distância da bola. Fiquemos com as mãos, que são mais frequentemente usadas quando se quer, de qualquer jeito, dar uma ajeitadinha na jogada. Pois bem, foi então com a mão que Jô marcou o gol da vitória do Corinthians por um a zero contra o Vasco. E foi com a atitude de negar a lambança que ele também marcou o gol contra da derrota da civilidade e da cidadania, tornando-se retrato de um dos mais arraigados traços perniciosos da cultura brasileira: o de burlar regras, normas e leis, das mais elementares às mais complexas, para dizer-se esperto. Igualmente grave: Jô negou o seu malfeito. Somente dois dias depois ele admitiu a presença da mão, após muitas críticas, mas aí já não vale. Aí é a esperteza da esperteza. Aí, Jô, é tentar outro lance com a mão.

Imaginemos, cara a cara, olhos nos olhos, Jô e o zagueiro do São Paulo Rodrigo Caio. Há cerca de cinco meses, São Paulo e Corinthians jogavam, houve uma falta, o árbitro a atribuiu a Jô e meteu-lhe o cartão amarelo. Um honesto Rodrigo Caio, dado ao respeito e à urbanidade, imediatamente disse ao juiz que fora ele, e não o adversário, quem cometera a infração. O cartão amarelo foi retirado, e Jô, que estaria fora da partida seguinte devido à punição, não apenas pôde nela atuar como marcou o gol que classificou a sua equipe para a final do Campeonato Paulista. Na época, Jô foi só palavras de elogios e de enaltecimento em relação ao gesto de Rodrigo Caio, até então jamais visto no futebol brasileiro.

A vida cobra um alto preço quando se lançam palavras ao vento. Chegou o momento de ele traduzir em ato os elogios ao colega de profissão. Que ilusão! Jô, covardemente, negou a mãozada e veio com a ladainha de bola-na-mão-e-não-mão-na-bola (as imagens o desmentem). Ele chutou para fora da meta da ética, ele chutou para fora do campo da ética, ele chutou para fora do estádio da ética a chance de vermos arrefecer um mínimo a histórica índole brasileira da esperteza, da ligeireza e da manha. Numa domingueira e futebolística e calorenta e preguiçosa tarde de domingo, Jô, de braçada, corroborou que “aqui vale tudo”, corroborou que não “existe pecado do lado de baixo do Equador”, como escreveu há quatro séculos, referindo-se ao Brasil, o teólogo, humanista e polímata belga Caspar Barlaeus.

O gol de Maradona com a mão na Copa de 1986

Viu-se (que alívio) uma reação nas redes sociais a exigir comportamento diferente do atacante, a cobrar-lhe que deveria pelo menos ter seguido a atitude correta com a qual Rodrigo Caio já nos contemplou. Na bússola de tais críticas vislumbra-se um tímido norte, um ainda engatilhante norte, com gente que pensa e age diferente. O brasileiro, em geral, convenhamos que tem a infindável paciência do personagem bíblico Jó (é só olhar as filas de doentes se arrastando nas portas dos postos de saúde e dos hospitais públicos). E Jó era íntegro, correto e verdadeiro. Os que reclamaram na redes sociais perderam já a tal paciência diante de tanto egoísmo, oportunismo e individualismo que correm soltos por aí. Mas o Brasilzão mesmo, o Brasil grandão, esse continua a ser o País da troca do acento agudo de Jó pelo acento circunflexo de Jô, acento muito popular e conhecido em nossas plagas como “chapeuzinho”. Em suma: o Brasilzão ainda é de Jôs – e, já que estamos no campo do futebol, vale lembrar que o Jô da mãozada e contingentes de Jôs continuam a seguir a lei de Gerson, aquela que num anúncio de cigarro afirmava que o importante era levar vantagem em tudo. Os fãs da lei de Gerson continuam a admirar, por exemplo, o gol de Maradona com a mão, na Copa de 1986, no jogo contra a Inglaterra.Horror! É levar vantagem valendo-se de cargo ou função para furar fila de hospital ou fila de show (e do próprio futebol, claro); levar vantagem ao grudar o chiclete sob o tampo da mesa ou no braço (ah braço, braçada) da cadeira; levar vantagem ao jogar papel no chão, cuspir na rua, sorrir pela frente para o colega de trabalho e pelas costas puxar-lhe o tapete. Essa lista não teria fim. Aliás, é o Brazilzão dos Jôs no qual as pessoas entram em elevador sem esperar que antes as outras pessoas saiam dele. É o atropelo geral, da razão, do caráter e da gentileza.

Troque-se o acento agudo pelo circunflexo. O bíblico e correto Jó sai de cena, e Jô entra em campo com a índole da esperteza e da manha

Não faltará quem diga que essas pequenas transgressões (como se mentir fosse coisa pequena) não são nada diante da roubalheira e da corrupção dos políticos. Essa fala é tonta e tosca. O escritor, poeta e dramaturgo irlandês Oscar Wilde ensinou: “faça uma pequena concessão em seu padrão ético”, uma mínima concessão que seja, e você estará abrindo “as portas para todas as concessões” – em si próprio e nos outros. A corrupção e a demagogia que existem hoje nos quatro cantos do País têm origem justamente nessas infrações anãs do dia a dia. É daí que nasce o ladrão gigante da política. É desse compasso miudinho que nasce o sambão. É das pochetes que nascem as malas. Eu me recuso a achar que “Aquarela do Brasil” é o nosso segundo Hino Nacional. Eu não acho legal o Brasil malandro e meio trambiqueiro que Ary Barroso empodera, cometendo a bobagem de escrever “esse coqueiro que dá coco”. Se é coqueiro, ia dar o quê? Outro ponto, meu caro Ary, que não acho justo nem certo, é você ter chamado o mulato de “inzoneiro”. O mulato e o negro sofrem até hoje porque “inzoneiro” foi o senhor da casa grande e muitos intelectuais que defendiam a manutenção da escravatura.

O famoso anúncio da lei de Gerson: emblemas de um Brasil que se julga “esperto”

É dessas priscas eras, do contrabando do pau brasil, da exploração predatória de minérios, da escravidão, do Império, dos primórdios da República que surgiu de arranjo político (com vaivém de mentiras entre seus articuladores), é desse tempo que vem a corrupção avassaladora e o patrimonialismo da chamada classe política. Ah, e é também dessa grama que brotou a erva daninha da índole manhosa, da índole da esperteza (“sou espeeerrto”). Dom Pedro I tinha a marquesa de Santos como amante e, como segunda amante para trair a primeira, teve um filho com a irmã da própria marquesa. E negava. Caro leitor, isso não é bom, não presta. Pois então, é de tudo isso aí que vem a negação dita pelo acento circunflexo, segundo a mídia esportiva, até para a sua mulher. Ela perguntou-lhe duro: “você fez o gol com a mão?”. Da mesma forma que corpulentos corruptos se autocanonizam diante de Sergio Moro, o magro Jô disse “não”. Assim como tanto bacana dá carteirada, Jô faz parte hoje de um Brasil ludibriador e driblador que teima em ser eterno. Falo aqui do Jô do Corinthians, mas poderia ser o Jô de qualquer outro time, grande ou pequeno. O doido e doído é saber que cada clube sempre defende o seu Jô e acusa o Jô adversário. Lembrando o imortal locutor Fiori Gigliotti, “é fogo torcida brasileira!”.