Como cidadã e ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves tem o direito de ser contra o aborto. Mas, também enquanto cidadã e ministra, ela não tem o direito de impedir que outro ser humano se valha de leis que vigoram no País — e, se assim o fez, Damares praticou um ato gravemente ilegal. Esse é o motivo — e espera-se que seja o real motivo e não apenas mise-em-scène para bajular governo e congressistas — que levou a Procuradoria-Geral da República (PGR) a abrir “uma investigação preliminar” contra a ministra: o Ministério Público quer saber se ela de fato tentou intervir com o peso de seu cargo visando a impedir que uma menina de dez anos abortasse, grávida que estava em decorrência de sistemáticos estupros praticados pelo tio. “Existem fortes indícios de que Damares Alves constrangeu a criança e seus familiares. E para alcançar seus objetivos utilizou, absurdamente, cargo público para oferecer benefícios”, diz o jurista Ariel de Castro Alves, um dos mais conceituados especialistas do País em direito da infância e juventude. O procurador-geral, Augusto Aras, já comunicou ao Supremo Tribunal Federal: se os indícios apontarem para a necessidade de uma apuração mais detalhada da conduta de Damares, será formalmente instaurado inquérito. A relatora do caso será a ministra Rosa Weber.

A legislação penal brasileira permite que a mulher interrompa a gravidez em caso de violação sexual, e, mesmo quando se trata de menor de idade, a vontade da criança é levada em consideração pela Justiça (os responsáveis pela guarda da menor também são ouvidos). A garotinha em questão vivia na pequenina cidade capixaba de São Mateus e foi barbaramente violentada ao longo de quatro anos, até que o crime acabou descoberto em agosto último. Dá para qualquer pessoa dotada de sentimento de empatia colocar-se no lugar dessa criança e entender o seu drama de desmoronamento físico e psicológico. Alguém de dez anos se tornar mãe já é totalmente não recomendado (as chamadas “mães menininhas”), imagine-se então quando a gestação decorre de brutal e estúpida relação não consentida.

“Existem fortes indícios de que Damares Alves usou o seu cargo público para acenar com benefícios; e, também, de que constrangeu a criança” Ariel de Castro Alves, jurista

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Crime de responsabilidade?

Pois bem, Damares Alves, alegando motivos religiosos (que são opções feitas por ela mas que não podem ser confundidas com a racionalidade do Estado laico), teria preferido atuar nos bastidores, na base da carteirada, seguindo o princípio bolsonarista de que todo e qualquer assunto tem de ser ideologizado para dar corda aos oportunistas desejos do presidente da República. Mais: segundo notícias veiculadas à época, fora tão estridente a movimentação da equipe que ela enviou ao Espírito Santo, para barrar o aborto autorizado pela Justiça a pedido da vítima, que se teria chegado ao ponto da chantagem: desista-se de interromper a gravidez e sobrarão recompensas a familiares e ao conselho tutelar. Houve reuniões e, de uma delas, a ministra teria participado por meio de videochamada. Ninguém cedeu à tentativa de sedução. Pressionados, os médicos de Vitória se recusaram a fazer o aborto, e a menina acabou sendo levada para o Recife, onde realizou-se sem intercorrências clínicas o procedimento requerido por ela.

BRASÍLIA Pessoas foram às ruas defender que a menina de
dez anos abortasse: manifestação contra a cultura do estupro (Crédito:Divulgação)

A ministra Damares vem sempre se defendendo sob a alegação de que foi ela quem tomou a iniciativa e pediu à Polícia Federal para investigar o caso. Se tal alegação proceder, Damares nada mais fez que cumprir o seu dever funcional. Quanto ao procedimento preliminar da Procuradoria-Geral da República, acolhendo reivindicação de uma comissão de parlamentares de diversos partidos, frise-se, mais uma vez, que, se Damares tentou forçar a continuação da gestação, cometeu ela grave crime de responsabilidade — o que não é nada inédito nesse governo. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos se pronunciou em nota, afirmando que “trata o caso com absoluta transparência e enxerga a situação com total tranquilidade”. Ariel de Castro Alves faz um importante alerta: “Precisa ser investigado, também, quem repassou informações para as redes sociais, incitando a violência contra a criança e a equipe médica. Isso foi um crime que segue impune”.