ESPERANÇA Yo-Yo Ma: conforto e estado de espírito único (Crédito:Divulgação)

“Vou pegar o destino pela garganta e não vou deixá-lo me dominar.” O alemão Ludwig van Beethoven disse a frase no início dos anos 1800, quando descobriu que teria de enfrentar em breve a surdez total. O otimismo da obra que estava criando no momento, a “Sinfonia no. 2”, não reflete a depressão que o acolheu: o compositor chegou a pensar em se matar. Em seu testamento, dizia que se sentia humilhado ao ouvir o canto de um pássaro, pois sabia o drama que lhe esperava. Aos poucos, aceitou a tragédia e passou a acreditar no destino e no triunfo do espírito sobre a matéria, forma que encontrou para manter a sanidade emocional.

Um dos maiores gênios da história da música clássica, senão da arte, Beethoven nasceu em uma família de músicos há 250 anos, em 17 de dezembro de 1770, em Bonn, na Alemanha. Aos sete, já dava concertos. Faleceu em 26 de março de 1827 e, ao contrário de muitos compositores, teve o reconhecimento imediato: mais de 20 mil pessoas compareceram ao seu funeral, em Viena. Nos 56 anos em que viveu, assombrou o mundo com uma produção inigualável de sinfonias, sonatas, concertos e uma única ópera, “Fidélio”. Sua última sinfonia, a de número 9, demorou seis anos para ser escrita e inovou por ser a primeira obra a trazer um coro cantado, o poema “Ode à Alegria”, do alemão Friedrich Von Schiller.

SÉRIE Daniel Barenboim, em “Sobre Beethoven”: 13 episódios gravados em 1970 foram resgatados e estão na internet (Crédito:Divulgação)

Apesar de as celebrações terem sido prejudicadas pela pandemia, os 250 anos de Beethoven inspiraram apresentações ao longo do ano em todo o mundo. A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) recorreu às lives para manter sua programação. Para o diretor artístico Arthur Nestrovski, Beethoven influenciou o desenvolvimento das orquestras profissionais no século 19, que tiveram de se reinventar para atender à apresentação de suas nove sinfonias. “Muito do que hoje nos parece natural numa sala de concertos está ligado à obra e à pessoa de Beethoven. A própria ideia de um canône musical, centrado nos grandes autores, na prática começa com ele, que se torna obrigatório no repertório”, afirma Nestrovski. Para ele, o compositor teve um impacto até no processo de fabricação de pianos, impondo demandas técnicas aos principais fabricantes de Viena e, por extensão, às fábricas inglesas e ao resto da Europa. Com os concertos abertos ao público desde outubro, a Osesp tem vocação híbrida, presencial e digital. Nesse fim de semana, o maestro Thierry Fischer rege a Quarta e a Oitava sinfonias na Sala São Paulo, com transmissão simultânea ao vivo pelas redes sociais. A ideia é cumprir o programa original da orquestra, o que garante, inclusive, o lançamento de todas as sinfonias de Beethoven com regência de Fischer pelo Selo Digital Osesp.

Homenagens

O pianista e maestro Daniel Barenboim apresentou a série “Sobre Beethoven” em 1970, aos 20 anos. Parte desse material nunca havia sido exibido, mas agora, em virtude dos 250 anos do compositor, os 13 episódios foram resgatados e estão disponíveis gratuitamente no Youtube, no canal “Film&Arts Brasil”. Barenboim fala e executa trechos ao piano, compartilhando sua visão pessoal sobre os métodos e a mentalidade do compositor. A jornada musical traça a progressão da carreira de Beethoven no contexto de contemporâneos como Mozart e Haydn.
O pianista e maestro João Carlos Martins também crê que Beethoven ajudou a quebrar paradigmas. “Seus últimos quartetos são o suprassumo da perfeição. Ele foi para a música o que a revolução francesa foi para o mundo, além de ser o maior caso de superação na história da arte”, diz Martins.

Orquestras em todo o mundo fizeram homenagens à data. A Filarmônica de Osaka, no Japão, reuniu dez mil cantores para entoar o coro da Nona Sinfonia em um estádio. Já os músicos da Sinfônica Kimbanguiste, no Congo, tiraram o ano para aprender alemão. No festival online da revista “New Yorker”, nos EUA, o violoncelista Yo-Yo Ma tocou a Sonata no 3 e defendeu que a música é essencial nesse momento para a humanidade porque nos dá esperança. “A composição pode ser de Beethoven, mas ela acontece verdadeiramente na cabeça de todos nós, em concertos, casamentos, funerais. Ela não nos dá apenas conforto, mas nos coloca em um estado de espírito único”, diz Yo-Yo Ma. “A música é sempre uma experiência individual. Não é preciso tocar uma obra de Beethoven para mil pessoas para encontrar seu sentido, basta tocá-la para uma única pessoa.” Esses 250 anos são a maior prova de que sua música é mesmo uma melodia imortal.

ENTREVISTA
Thierry Fischer, maestro da Osesp

“Beethoven revolucionou a música clássica”

Por que Beethoven ainda é relevante para a história da música?
Ele foi um compositor diferente, único. Revolucionou a música clássica com ousadia e um talento visionário nunca visto até então. Foi o primeiro compositor a introduzir a força e a determinação em sua música. Além disso, foi um personagem crucial, pois abalou a normalidade dos códigos no mundo da música. Ele subverteu as regras de composição de maneira impressionante para sua época.

Qual é a sua obra favorita?
Tenho a necessidade de reger tudo que Beethoven escreveu com certa regularidade. Gosto de tudo que ele compôs, portanto classificar suas obras é impossível para mim.

REGENTE Tierry Fischer: “nunca precisamos tanto de música” (Crédito:Divulgação)

Orquestras de todo o mundo ainda tocam sinfonias de compositores dos séculos 18 e 19. Por que continuamos voltando aos clássicos ?
Voltaremos aos nomes consagrados enquanto suas obras ainda falarem conosco. Precisamos desses compositores geniais, assim como nunca abandonamos Machado de Assis, Jorge Amado ou Hemingway.

Há bons compositores contemporâneos?
Sim, muitos. A Osesp tocará em 2021 obras de doze compositores vivos e muito relevantes. Eles são apreciados pelo público.

Há nomes de destaque fora da Europa?
Gosto dos japoneses Toru Takemitsu e Toshio Hosokawa e dos americanos Elliot Carter e Charles Ives. Citaria ainda Unsunk Chin (Coreia do Sul) e Brett Dean (Austrália), compositores residentes da Osesp.

Quem são seus maestros favoritos?
Claudio Abbado, Niikolaus Harnoncourt, Pierre Boulez e Carlos Kleiber.

Quais são seus planos para a Osesp em 2021?
Dada à pandemia, não temos de planejar com tanta antecedência como normalmente fazemos. Meu objetivo é manter vivo o espírito maravilhoso da Osesp e dar o máximo de sentido possível à beleza por meio dos sons. Nunca precisamos tanto de música e cultura em geral. As artes podem mudar o mundo.

Já se adaptou ao Brasil?
Ainda moro em um hotel, mas estou pensando em comprar um apartamento. Me adaptei facilmente à vida nessa cidade. Amo a vibração de São Paulo.

Para Karabtchevsky, compositor foi “referência às gerações futuras”

IMORTAL “Sua obra ultrapassa a vida” (Crédito:Divulgação)

“Cada época, tanto na ciência como nas artes, ostenta uma figura mítica que serve como referência às gerações futuras. Foi assim no Barroco, com o gênio de Johann Sebastian Bach, e no Classicismo onde apareceram, envoltos sob o mesmo ímpeto criador, os nomes grandiosos de Haydn, Mozart e Beethoven. O alemão Ludwig van Beethoven viveu até os 57 anos, mas sua obra ultrapassa as dimensões da vida relativamente curta. Compôs nove sinfonias e, esgotados os recursos de natureza instrumental, introduziu, na Nona Sinfonia, um coro e também solistas, como se quisesse com isso realçar o texto de Schiller: “Abraçai-vos, irmãos”! Beethoven constituiu-se no fabuloso alter-ego das gerações subsequentes e, em todos os compositores que lhe sucederam, deixou traços indeléveis de seu gênio. Mostrou caminhos que, apesar de calcados numa tradição clássica, apontavam para o futuro.”

Isaac Karabtchevsky, Diretor Artístico e Regente Titular da Orquestra Petrobras Sinfônica, faz live sobre os 250 anos de Beethoven em 16/12, às 11h, no Youtube