Países de primeiro mundo, de uma hora para outra, estão sendo acometidos de crise de consciência? É por isso que começam a fazer mea-culpa, reconhecendo as atrocidades praticadas no passado com a população de suas colônias? Não. Há de fato movimentos de grandes nações no sentido de admitir genocídios que promoveram, mas existe rara dose de altruísmo. A motivação é a manutenção da chamada “hegemonia a distância”. Bem ao contrário do que ocorreu há décadas ou séculos, a sustentação do status quo tem de ser feita hoje pela demonstração, falsa ou verdadeira, de empatia — e, reside aí, a propulsão da política de reparação do mal. Nesse terreno, um dos fatos mais visíveis nos últimos dias foi a manifestação do presidente dos EUA, Joe Biden, em relação à Armênia.

RUANDA O presidente Macron em visita ao Memorial do Genocídio de Kigali: “Temos o dever de olhar para a história: (Crédito:LUDOVIC MARIN)

Em meio à Primeira Guerra Mundial, os americanos participaram, em 1915, do genocídio, agora admitido pela Casa Branca, da população armênia, no Império Otomano. Cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas foram assassinadas. Desse genocídio nasceu a Turquia. O gesto atual de Biden, meramente simbólico, desagradou o governo turco do presidente Recep Erdogan, com quem os EUA vêm trocando farpas, sobretudo no campo dos direitos humanos, a exemplo da perseguição ao ativista político Osman Kavala. Fazer com que os armênios se revoltem contra o autoritário Erdogan no presente, pelo genocídio do passado, e exijam a confissão de culpa, abre também a possibilidade de eles pleitearem a porção do chão (cerca de um terço do território) que pertencia a seus ancestrais. Eis o xadrez dos EUA, unindo o útil ao agradável. O agradável: manter-se simpático e hegemônico em relação aos armênios; o útil: tentar desestabilizar Erdogan. “Rejeitamos esse populismo”, declarou o ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlut Cavusoglu.

A Guerra do Paraguai

Outro fato recente de mea-culpa refere-se ao reconhecimento, por parte do governo alemão, do genocídio dos namíbios entre 1904 e 1908, principalmente das etnias herero e nama — cerca de cem mil pessoas foram assassinadas e muitas delas eram levadas ao deserto sem água e alimentação, e lá abandonadas para morrerem de sede e fome. Ao contrário dos EUA, porém, a Alemanha agirá concretamente, investindo, nos próximos trinta anos, um bilhão de euros em saúde e infraestrutura no país localizado no sudoeste da África. Por que a Alemanha age assim? Porque descendentes daqueles que foram massacrados começam a exigir indenizações individuais do governo alemão. É também uma fórmula de manutenção da hegemonia sobre os africanos, mas mantendo-os à distância. “O que está ocorrendo é o enfraquecimento do Estado-nação”, diz Victor Missiato, doutor em História e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre Desenvolvimento Humano da Universidade Mackenzie. “Há a presença cada vez maior de imigrantes na Europa e nos EUA, e esses imigrantes, indo ao debate político, desmoralizam as nações alemã e americana”.

Em viagem à Ruanda, o presidente da França, Emmanuel Macron, acaba de aderir a essa recém-criada linha politicamente correta — ainda que o benfeitor de hoje, que é o malfeitor de ontem, tenha interesses geopolíticos e comerciais, evitando muitas vezes a expressão genocídio. Macron disse que seu país se responsabiliza pela violência perpetrada no passado e pediu desculpas oficiais pelo massacre de 1994, no qual aproximadamente 800 mil ruandeses foram assassinados. “A França tem o dever de olhar para a história”, disse ele em visita ao Memorial do Genocídio de Kigali. Desde que assumiu o cargo em 2017, Macron assinou acordos de investimento com a Etiópia e o Quênia. Motivo: nesses locais, movimentos nacionalistas começam a pedir indenizações. Falou-se dos EUA e da Europa, vem com naturalidade o interesse pelo Brasil. De vítimas mais notáveis existem, por exemplo, as ainda tão abandonadas populações indígenas, que foram e seguem sendo vítimas de um genocídio. Fora de nossas fronteiras, tropas brasileiras mataram crianças paraguaias em 1869, na batalha de Acosta Ñu, na guerra entre Brasil e Paraguai. O Senado já responsabilizou o País. Falta o reconhecimento do governo federal.