O chanceler Mauro Vieira jogou água fria na expectativa de Jair Bolsonaro de uma interferência do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre sua situação jurídica. Em entrevista à coluna, o ministro afirmou que a opinião de algum governante estrangeiro sobre a situação de Bolsonaro não influenciará em nada o destino do ex-presidente. “A opinião que algum chefe de Estado possa ter sobre essa questão não tem influência nenhuma porque é uma decisão do Judiciário brasileiro e do mais alto nível, no Supremo Tribunal Federal”, afirmou Vieira, citando a boa relação que Lula teve com o então presidente George Bush, nos primeiros mandatos do petista, para afirmar que o Brasil terá um bom relacionamento com o governo Trump.
“Eles (Lula e Bush) tinham um ótimo diálogo, uma ótima relação, apesar de partidos que tinham posições, cada qual, posições diferentes, mas nunca houve nenhum tipo de antagonismo. Pelo contrário, muito diálogo, muita discussão, muita integração e resultados favoráveis. Com a volta do presidente Trump ao governo americano, eu tenho certeza de que esse é o caminho a ser seguido nas relações bilaterais”, afirmou Mauro Vieira.
O ministrou respondeu a uma declaração de Trump de que o país taxaria demais os produtos americanos: “Eu não acho que o Brasil taxe demais”. “Aliás, acabamos de aprovar uma reforma tributária. As taxas são absolutamente normais dentro dos padrões das tarifas consolidadas na Organização Mundial de Comércio. Talvez o presidente Trump tenha projetos de mudança também na estrutura tarifária. Eu não sei…”, analisou. Neste caso, o chanceler diz que o Brasil está pronto para conversar. “É natural que países e governos tenham posições diferentes em determinados assuntos, mas para isso existe a diplomacia.”
Vieira também minimizou a pressão que parlamentares bolsonaristas tentam fazer na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA para denunciar suposta perseguição política no Brasil. “Ninguém tem dúvida de que no Brasil há total liberdade de expressão, independentemente de campanhas contrárias que sejam feitas.”
Ainda no ambiente regional, Vieira disse à coluna que a relação com o governo argentino é “fluida” e lembrou que o presidente Lula já se encontrou com Javier Milei em dois eventos internacionais: “Encontros normais, diálogos normais. Os interesses nacionais estarão acima sempre de qualquer diferença política, pelo menos, pelo lado brasileiro, eu posso garantir”. Já sobre as eleições venezuelanas, o chanceler destacou que, por princípio, o Brasil não reconhece governos, mas Estados.
O chanceler informou que o acordo entre o Mercosul e a União Europeia deve ser assinado no início do segundo semestre e defendeu que o texto final contempla as reivindicações da França. “Os franceses sempre defenderam evidentemente os interesses dos agricultores franceses e sempre diziam que precisavam de um acordo mais moderno e queriam uma atualização do acordo. Foi exatamente o que nós conseguimos”, disse.
Mauro Vieira destacou que o texto aprovado em 2019 foi atualizado e que o Brasil foi encarregado pelo Mercosul de liderar as negociações. Se o acordo for assinado no segundo semestre, como prevê o ministro, Lula estará na presidência do Mercosul. “Nos dois anos de governo Lula, nós conseguimos um enorme progresso com relação ao texto que foi anunciado como concluído em 2019, mas que não avançou, nem começaram nenhum tipo de tradução ou de trabalho para as outras línguas, porque houve oposição da União Europeia sobretudo com relação à política ambiental brasileira. Houve um estancamento, uma paralisação. Nós retomamos esse texto e melhoramos em muito”.
Leia abaixo a íntegra da entrevista.
O presidente Lula já disse que pretende manter a viagem ao Japão no final de março e já tinha previsto um calendário de viagens ao longo do ano. No seu planejamento, isso também está mantido? Como esse procedimento por que ele teve que passar afetou o calendário de viagens?
Bem, eu espero que não tenha afetado em nada, porque os contatos que tive e as notícias eram que o presidente está muito bem, totalmente recuperado, e que voltará ainda hoje (quinta-feira) para Brasília. Eu espero que ele possa cumprir com o calendário de convites e compromissos internacionais. É um ano muito intenso de compromissos. Ele tem a visita de Estado ao Japão, que é um fato muito especial, é muito importante. Ele confirmou essa visita, que ocorrerá no final do mês de março, nos últimos dias; e é um ano com várias outras coisas.
Que viagens mais esperar em 2025?
Há todos os compromissos que todos os anos ocorrem. Ele terá o G7. Se for convidado, como foi nos dois primeiros anos, deverá participar. Há a abertura da Assembleia da ONU. Também deverá participar. Deve haver uma reunião importante na área de meio ambiente sobre os oceanos, que terá lugar na França, ele deve participar também. E há também uma possibilidade, nessa ocasião, de uma visita à França.
Este ano o G20 será na África do Sul, portanto, eu já tenho agora, em fevereiro, a primeira reunião, que é a reunião de ministros do Exterior. Haverá uma cúpula no final do ano, a que o presidente deve ir também. Nós presidiremos, a partir de 1º de janeiro, o BRICS, e teremos também reuniões ministeriais grandes. O BRICS alcançou uma grande densidade, está se aproximando quase do G20. Há pelo menos 80 reuniões temáticas de grupos de trabalho; haverá a reunião de ministros do Exterior e haverá também a cúpula de chefes de Estado. E, depois, nós teremos um grande evento, que é a COP30, que também demandará uma energia muito grande, uma grande preparação. Por fim, teremos a presidência do Mercosul no segundo semestre do ano que vem, que também é posição muito importante, muito densa, que requer muito empenho na área de política externa.
Qual a expectativa do senhor para a relação Brasil-Estados Unidos com Donald Trump assumindo a Casa Branca?
A expectativa das relações bilaterais entre os dois países, entre Brasil e Estados Unidos, são sempre as melhores. O presidente Lula teve excelente contato com o presidente George Bush, que coincidiu com uma parte dos dois primeiros mandatos do presidente Lula. Eles tinham um ótimo diálogo, uma ótima relação, apesar de partidos que tinham posições, cada qual, posições diferentes, mas nunca houve nenhum tipo de antagonismo. Pelo contrário, muito diálogo, muita discussão, muita integração e resultados favoráveis. Com a volta do presidente Trump ao governo americano, eu tenho certeza de que esse é o caminho a ser seguido nas relações bilaterais. As relações são antigas, maduras, importantes para os dois países e tenho certeza de que ambos os chefes de Estado defenderão os interesses dos seus países e manterão o diálogo como tem que ser: normal, de alto nível, para justamente aprofundar ainda mais a nossa relação.
Trump disse que o Brasil taxa demais e que os Estados Unidos taxarão de volta. Osenhor concorda com essa afirmação?
Eu não acho que o Brasil taxe demais. Aliás, acabamos de aprovar uma reforma tributária. As taxas são absolutamente normais dentro dos padrões das tarifas consolidadas na Organização Mundial de Comércio. Talvez o presidente Trump tenha projetos de mudança também na estrutura tarifária. Eu não sei… Só vi essa referência, como você. Mas acho que o comércio é tão importante e é importante para os dois lados, importante e estratégico em diferentes áreas. Eu sei que estamos prontos a conversar e entender qual é o projeto, qual é o projeto de aumento de taxação. Não sabemos, por enquanto. Mas eu tenho certeza de que, diplomaticamente, manteremos um excelente diálogo, como sempre aconteceu até aqui. É natural que países e governos tenham posições diferentes em determinados assuntos, mas para isso existe a diplomacia.
Sobre a questão da taxação, O Brasil também tem interesse que se taxe menos alguns produtos, certo? Então também podem-se abrir negociações de ambos os lados.
O comércio tem duas mãos de volta; e é importante que se possa discutir de uma forma transparente e direta os interesses de cada lado.
O ex-presidente Jair Bolsonaro tem dito, desde a campanha americana, ter a expectativa de que Donald Trump interfira de alguma maneira em seu destino jurídico, seja fazendo com que o STF o absolva ou facilitando a aprovação de uma anistia. O senhor acredita realmente que está entre as prioridades de Donald Trump imiscuir-se em assuntos internos brasileiros?
Eu não tenho a menor ideia. O Brasil não se imiscui em assuntos internos de outros países, inclusive porque é um preceito constitucional. Nós não interferimos e não vamos nos manifestar. Agora, a opinião que algum chefe de Estado, algum governante, possa ter sobre essa questão, acho que também não tem influência nenhuma, porque é uma decisão do Judiciário brasileiro e do mais alto nível, no Supremo Tribunal Federal.
Ainda como estratégia de mobilização internacional, deputados bolsonaristas têm recorrido a organismos regionais, por exemplo a Comissão Interamericana, dizendo que há uma perseguição contra oposicionistas, aos direitos humanos de opositores. Como a diplomacia brasileira tem lidado com isso?
Eu acho que é muito claro; ninguém tem dúvida de que, no Brasil, há total liberdade de expressão, independentemente de campanhas contrárias que sejam feitas. Mas nós temos uma tradição. Somos membros fundadores da Organização dos Estados Americanos e participamos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e estamos prontos para dialogar como sempre estivemos. Recentemente houve uma visita de deputados da oposição à comissão, foram recebidos na embaixada, ou melhor, também na Embaixada do Brasil, na Embaixada Bilateral, mas foram recebidos também pelo embaixador do Brasil na OEA, com ambos os chefes de missão, e discutiram amplamente a questão. E é isso: é uma instituição democrática para se discutir os problemas. Nós não temos dúvidas quanto à liberdade de expressão total que existe no Brasil.
Existe alguma expectativa por parte do senhor, por parte do ministério, de que a relação com Javier Milei evolua para uma diplomacia em nível presidencial ou a tendência é que permaneça apenas a relação entre os corpos diplomáticos de Brasil e Argentina, enfim, os operadores dos dois governos, sem que haja interação entre os dois presidentes?
Eu estive com a primeira ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino, da Argentina. Tive ótimo contato, ótima interação, até antes mesmo da posse da qual eu participei representando o presidente Lula, e mantive contato durante todo o período em que ela esteve à frente do San Martín, do Ministério das Relações Exteriores da Argentina. E também agora, com o novo ministro, Gerardo Wertheim, já me encontrei com ele em Montevidéu e também no G20, no Rio. Também mantenho diálogo com ele. Hoje mesmo devo falar com ele ao telefone, porque são muitos os interesses. A relação Brasil-Argentina é muito intensa e com muitos interesses em todas as áreas. Isso se replica nos outros ministérios. Há contatos entre os ministérios da Economia na Argentina e o ministro Haddad no Brasil. Então, eu acho que esse diálogo é fluido. Isso é uma coisa que se aplica a todas as relações, porque é o interesse dos Estados que está em jogo. E mesmo a questão da diplomacia presidencial. Já ocorreram dois encontros. No G20 e agora na cúpula do Mercosul, os dois presidentes se encontraram. Encontros normais, diálogos normais. Os interesses nacionais estarão acima sempre de qualquer diferença política, pelo menos, pelo lado brasileiro, eu posso garantir.
Em relação à Venezuela, ainda há esperança de se ter algum tipo de comprovação sobre o resultado eleitoral? Até hoje oficialmente o Brasil não reconheceu o resultado das eleições de julho.
Nem reconhecerá, porque o Brasil não reconhece governos. A nossa posição, à luz do direito internacional, é que o Brasil reconhece Estados. Nós já reconhecemos a Venezuela há 185 anos, não precisamos reconhecer de novo. Mas é um país com o qual nós também mantemos diálogo. Eu falo com o ministro do Exterior, falei essa semana com ele. Temos uma embaixada lá lotada e funcionando; tratamos os interesses e mantemos esse contato porque é um país importante, com uma longa — eu sempre repito isso — uma longa fronteira, numa região muito frágil e delicada, que é a Amazônia. Temos evidentemente um comércio que sempre foi importante. Há interesses econômicos, por parte do setor privado brasileiro, em investimentos na Venezuela. Portanto, nós temos que continuar conversando. E a nossa posição é essa, é muito clara, nós vamos manter um contato, um diálogo sempre que for necessário para defender inclusive os interesses dos 20 mil brasileiros que vivem na Venezuela e também dos mais de 500 mil venezuelanos que vivem no Brasil. Chegaram ao Brasil num número muito mais elevado, cerca de um milhão e meio, pelo menos, e muitos viajaram para outros países, mas 500 mil ou um pouco mais permaneceram no Brasil.
O senhor vê alguma possibilidade de melhora no ambiente democrático venezuelano em 2025?
Olha, depende do governo venezuelano, da sociedade venezuelana, dos partidos políticos venezuelanos. Eu espero que possa haver um diálogo constante e que se chegue a uma solução, a um estado natural de equilíbrio e, sobretudo, de conversas de negociação entre os dois lados. Faço, inclusive, um apelo, um chamado. Eu acho que deve haver conversas entre a oposição e o governo.
Houve este ano um avanço muito importante no acordo do Mercosul com a União Europeia, mas ainda há uma forte oposição por parte da França e de alguns outros países. O senhor vê espaço de mudar a posição francesa? O presidente Lula, que tem uma relação boa com o governo francês, está trabalhando nesse sentido ou a oposição interna do agro francês impede que haja alguma mudança?
Foi um fato muito importante e simbólico que, depois de 23 anos, tenhamos terminado as negociações. O acordo não foi assinado e demorará a ser assinado, porque ele tem que ser traduzido para 27 línguas dos países integrantes da União Europeia, tem que passar por consultorias jurídicas desses países. É um trabalho de seis meses. Esperamos que a assinatura possa ocorrer no início do segundo semestre do próximo ano, ou durante o segundo semestre, que também coincidirá com a nossa presidência do Mercosul. Agora, sobre o texto, os franceses sempre defenderam evidentemente os interesses dos agricultores franceses e sempre diziam que precisavam de um acordo mais moderno e queriam uma atualização do acordo. Foi exatamente o que nós conseguimos.
O Brasil foi o encarregado pelo Mercosul de liderar as negociações. Nos dois anos de governo Lula, nós conseguimos um enorme progresso com relação ao texto que foi anunciado como concluído em 2019, mas que não avançou. Nem começaram nenhum tipo de tradução ou de trabalho para as outras línguas porque houve oposição da União Europeia sobretudo com relação à política ambiental brasileira. Houve um estancamento, uma paralisação. Nós retomamos esse texto e o melhoramos em muito. Não tem muita coisa mais a ver com o primeiro. Ele representa uma atualização, uma modernização para ambos os lados. E o acordo tal como está é considerado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, como um acordo estratégico para a União Europeia. E o presidente Lula diz também que é estratégico para o Brasil e para o Mercosul.
Quanto à assinatura, pode ser feita com ou sem oposição, de quem quer que seja, porque a Comissão já tem um mandato dos países, dos países integrantes da União Europeia, e pode assinar. Depois, vai precisar passar pelo Conselho Europeu e depois, então, pelo Parlamento Europeu para que a parte comercial entre em vigor provisório até que todos os outros parlamentos aprovem, ademais, o resto do acordo, a parte política. Eu espero que se consiga avançar nessas novas etapas de tradução, de assinatura, de aprovação no Conselho e no Parlamento Europeu. Evidentemente, os países têm suas posições, mas sempre também há eleições, mudanças de governo e estamos prontos para, dentro da esfera da diplomacia, conversar e negociar com todos os integrantes da União Europeia.