NO BRASIL Maria Fernanda Cândido: atriz interpreta a ex-mulher do mafioso (Crédito:Divulgação)

Quando se pensa na Máfia no cinema, logo vem à mente a trilogia épica de Francis Ford Coppola, O Poderoso Chefão, e os filmes verborrágicos de Martin Scorsese. O que eles têm em comum é que, mesmo quando revelam episódios de violência entre os rivais, exibem uma certa glamourização desse universo. Seus integrantes são assassinos cruéis, mas vivem e morrem sob a lei do silêncio, a lendária “omertà”. O Traidor, de Marco Bellocchio, passa longe disso por diversas razões. Sua maior diferença é que o longa é baseado em uma história real, não em uma versão romantizada do cotidiano dessas famílias de criminosos italianos, como fizeram Coppola e Scorsese.

É um filme mais cru, escuro, sem nenhum glamour. Narra a história de Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino), um dos poucos mafiosos na história que ousaram desafiar a organização centenária e entregar seus ex-companheiros, beneficiando-se do instrumento jurídico da delação premiada. É um personagem desonrado, cuja traição leva seus filhos e outros membros de sua família à morte. Quem entra para a “Cosa Nostra” nunca pode subestimar o conceito de “vendetta” (vingança).

Na Itália, a história de Buscetta (pronuncia-se “Bus-xetta”, não “Busquetta”, como faziam os telejornais nos anos 1970) poderia ser só um caso de delação. Para os brasileiros, porém, sua trajetória traz uma curiosidade extra: ele passou um período autoexilado no Rio de Janeiro, onde casou-se com a socialite carioca Maria Cristina de Almeida Guimarães (Maria Fernanda Cândido). Em 1972, após ser denunciado por tráfico de drogas, foi preso, torturado e deportado para a Itália. Em uma das cenas mais fortes de O Traidor, Maria Cristina é pendurada de ponta-cabeça do lado de fora de um helicóptero para convencê-lo a colaborar com a polícia. Buscetta voltou ao Brasil nos anos 1980. Foi preso novamente e, dessa vez, decidiu colaborar com a investigação liderada pelo juiz Giovanni Falcone quando voltou para a Itália.

Outra cena marcante revela como é tensa, na prática, a vida de um delator: durante um jantar com a família, em um restaurante numa cidadezinha perdida do meio-oeste americano, Buscetta ouve um homem cantarolando uma música tradicional italiana. Abandona o lugar imediatamente, com medo de ter sido descoberto. Seu temor é justificado, uma vez que nem o juiz que colheu seu depoimento viveu em segurança: o próprio Falcone foi assassinado anos depois, em 1992, em um atentado à bomba que explodiu o seu carro com uma tonelada de TNT, matando também sua esposa e os seguranças.

Marco Bellocchio, diretor e roteirista de O Traidor, é um dos grandes nomes do cinema italiano do século 20. Pertence a uma geração genial que inclui Federico Fellini, Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini, cineastas que revolucionaram a sétima arte. Aos 82 anos, ele continua na ativa. Em seu filme mais recente, o documentário Marx Può Aspettare (Marx Pode Esperar), revisita um episódio dramático de sua vida: a morte de seu irmão gêmeo Camillo, que cometeu suicídio aos 29 anos.

Divulgação

Uma vida dedicada ao crime

Nascido em Palermo, na Itália, o mafioso Tommaso Buscetta foi preso duas vezes no Brasil. Apesar de ter morado no Rio de Janeiro, a polícia o deteve pela primeira vez na cidade catarinense de Itapema, em 1972. Em 1983, foi preso novamente em São Paulo. Quando descobriu que seria extraditado para a Itália, tentou se matar tomando estricnina. Ficou quatro dias no hospital, mas logo foi enviado a seu país natal. O Brasil não foi o único local da América Latina onde ele buscou refúgio. Após a Segunda Guerra, com a Itália arrasada com a derrota do fascismo, Buscetta morou quase uma década em Buenos Aires, na Argentina. Passou ainda pelo México antes de se fixar no Paraguai, onde se tornou traficante de heroína. Depois de delatar a máfia para o juiz Giovanni Falcone, foi extraditado para os EUA em 1993, onde passou por diversas cirurgias plásticas antes de morrer, em 2000, de câncer, aos 71 anos.