“É bem louco o ator” ― é assim que Matheus Nachtergaele define a carcaça emprestada para o ofício da dramaturgia em sua atual dimensão. Aos 56 anos de idade, o artista coleciona sucessos nas telinhas e nas telonas, e está prestes a estrear no cinema nacional a sequência de “O Auto da Compadecida”, na pele do eterno João Grilo, seu personagem icônico no primeiro longa da franquia, filmado há 25 anos.
Após viver um 2024 intenso de trabalho e aparições públicas, o veterano participou do IstoÉ Gente como a Gente — projeto do site IstoÉ Gente, que aborda o lado pessoal e espontâneo de personalidades brasileiras —, e falou sobre tudo: trabalho, arte, cultura, política, vida e morte… ah, a morte. Até a finitude da vida vira poesia na boca de Nachtergaele.
“[…] A morte é um lugar onde reúno minha consciência e permaneço. Não preciso, não quero reencarnar nesta forma. Que seja tudo reaproveitado para as novas viagens que a vida tiver que fazer”, declara.
“A borboleta, de asa aberta, azul, brilhante, quando fecha as asas é uma folha perfeita. Se ela pousar em qualquer lugar e fechar as asas, ela não vai ser caçada, não vai ser perturbada. […] Isso transcende o meu entendimento, me faz sentir um m**da que não entende nada da vida, mas ao mesmo tempo me dá o sentimento de que eu sou uma das tentativas da vida de estar aqui”, completa.
O ator aproveitou a ocasião para detalhar a produção do filme de Guel Arraes, que chegará ao cinema no dia 25 de dezembro, como um presente de Natal para o público. Emocionado em resgatar a relação entre os amigos João Grilo e Chicó (personagem de Selton Mello), Matheus relaciona a personalidade do personagem à figura do brasileiro.
“É através do João Grilo que percorremos os sertões de nós, pelo meu tipo físico também, [são] pessoas simples, do bem, do mal, do Rio de Janeiro, da Bahia, do Nordeste, do Sul, onde for, em geral foi um corpo escolhido para representar quem está à margem, todo mundo caiu na arapuca do capitalismo, você está rico no começo do mês, você está pobre no final do mês, você paga aluguel, escola das crianças, comida, e de novo, vem o mês que vem. Isso é o Grilo, só que o Grilo é isso todo dia, acho que a maioria do povo brasileiro é isso todo dia, de novo, e de novo, e de novo”, afirmou.
‘Ainda Estou Aqui’
Ao ser questionado sobre o atual cenário do cinema brasileiro no exterior, Matheus Nachtergaele se mostrou otimista. O ator, que arrasta uma amizade de décadas com Selton Mello ― que faz parte do filme “Ainda Estou Aqui”, sucesso de bilheterias e possível concorrente ao Oscar 2025 ―, enalteceu o trabalho do elenco do longa de Walter Salles e torceu para que o “barulho” em torno do filme não seja passageiro.
“Nosso cinema muito mais legal, eu falo isso com a boca cheia, minhas bochechas chegam a encher de alegria [risos]. Eu espero que essa onda do ‘Ainda Estou Aqui’ não seja só uma onda específica e relacionada a esse glamour do Oscar, mas que seja um lembrete de como nosso cinema é lindo e múltiplo”, destacou.
Confira a entrevista completa abaixo:
IstoÉ Gente: Como foi voltar às novelas esse ano em “Renascer” após quase uma década?
Matheus Nachtergaele:
MN: Foi delicioso. Eu, como passo muito tempo dedicado a fazer filmes, senti bastante o abandono das pessoas das salas de cinema. Me pareceu tristonho e me levantou uma pulga atrás da orelha. Será que não é hora de ir de novo para dentro das casas, naquela tela mais cotidiana, mais antiga, que é a telenovela do Brasil? Sempre fazendo muitas séries, sempre faço televisão, mas novela não fazia há uma década, mais ou menos. Quando eu recebi o telefonema do Gustavo Fernandes, que eu conhecia do início da retomada do cinema brasileiro, Gustavo era o diretor artístico do projeto, e ele então me ligou e disse: “Olha, vai rolar o remake de ‘Renascer’, vai ser muito bonito, te garanto. Tem um personagem lindo que foi do seu Nelson Xavier, chamado Norberto, você quer fazer?” Sem ler a sinopse e sem ter visto “Renascer”, porque eu não vi, eu já trabalhava na época. Eu disse sim, disse sim, porque tinha acontecido a coincidência bonita, eu estava pensando se não era o caso de voltar a entrar cotidianamente na casa das pessoas, e recebi o telefonema do Gustavo, que eu admiro, e sabia que “Renascer” era um texto lindo do Benedito [Ruy Barbosa], papel que foi do Nelson Xavier, que é um dos atores, da formação de quem é um ator brasileiro de verdade, então eu fui e acho que fiz bem em topar, porque me pareceu que “Renascer”, por vários motivos, foi uma obra de arte a cada dia, todos os dias, no set de gravação, era um empenho artístico mesmo de todas as equipes, de todo o elenco para fazer, dar novela um negócio bonito, para entrar na casa das pessoas com cerimônia, sabe? E efetivamente naquele momento fez muito sentido para mim, nesse passado recente em que o brasileiro tinha abandonado as telas de cinema, foi muito gostoso ter feito “Renascer” com essa qualidade e ter estado de novo junto ao cotidiano das pessoas, isso fazia tempo que eu não fazia, e senti no dia seguinte da estreia da novela a alegria das pessoas ao meu redor, nas ruas, em estar me recebendo diariamente na casa delas, e aumentou a resposta bonita, faz bonito para eles, faz assim como cada dia é uma estreia nobre, sabe? Vocês não vão a Maomé, Maomé vai até vocês, vocês não vão mais até o cinema de arte, então a gente traz para vocês o que a gente tiver de melhor.
De quem foi a ideia de furar a quarta parede?
MN: Eu sugeri e todos os diretores abarcaram a ideia, que é um procedimento que se faz bastante em comédia, bastante em cinema, não é nenhuma novidade, mas em uma novela das 20h, que não é uma novela cômica, nem eu era de um núcleo cômico exatamente, isso poderia ser uma questão, então eu propus para todos. Foi no segundo dia de gravação, eu falei, cara o Norberto é um fofoqueiro, a vida passa diante dos olhos dele, naquela venda todos os personagens vão passar pelo Norberto, o Norberto vai ter uma história de amor muito curta, a Jacutinga vai embora logo e ele vai ser um cara do amor perdido e eu acho que os textos dele parecem que pedem que ele comente com a câmera, porque era sempre uma conclusão de fofoqueiro, era um comentário sobre a história e sobre cada personagem, eu estava nesse dia com Valtinho Carvalho, que é um mestre do cinema, eu falei:
“Valtinho, está me dando uma vontade de falar com o público”. Como o Valtinho fotografava muitos filmes que eu fiz com o Cláudio Assis e no cinema do Cláudio Assis eu sempre quebrava a parede em um momento escolhido, eu cheguei para ele e disse: “Essa novela é tão cinematográfica, será que isso também a gente pode arriscar?” Valtinho pediu licença, foi ligar para o Gustavo, falou: “Mateusinho está aqui no set, doido para olhar para a câmera e a resposta foi: olhe quando quiser”. Dias depois os capítulos começaram a chegar com o Bruno Luperi já dizendo “Norberto olha para a câmera e diz”.
E começou a virar um experimento mesmo, foi muito bonito, porque eu voltei para as novelas, uma novela de texto lindo, novela para atores mesmo, para essa novela não importava que a gente estava nos tempos de Tiktok, vamos para cenas de dramaturgia com atores, textos longos, de páginas e páginas, como não se faz mais e vamos fazer, também não era uma novela cheia da grana para viajar por paisagens, era uma novela dos atores, Norberto para mim foi uma companhia a mais que eu tive, além de eu participar da novela, da vida dos personagens todos e de ter minha história de amor ali com a Jacutinga, eu também tinha o público como companhia, era uma camada a mais que só o Norberto tinha, foi muito especial, tanto que eu topei de cara a fazer “Vale Tudo”, eu ainda estava fazendo o finalzinho de “Renascer” quando me convidaram para fazer “Vale Tudo” e eu topei.
O que acha do sucesso de “Ainda Estou Aqui”, grande aposta para o Oscar 2025?
MN: Olha, o cinema brasileiro tem filmes de muito sucesso. “Ainda Estou Aqui” é uma surpresa muito importante, muito agradável e tem lá os seus motivos, o Waltinho Salles é um diretor clássico que fez um filme muito representativo do Brasil, que é o “Central do Brasil”, no qual eu estou também, e que tem muito acesso ao mercado internacional. No “Ainda Estou Aqui” também acertou de novo esse tom de fazer um filme que é de brasilidade, mas que é um clássico, que não é partidário, não tem nenhuma bandeira partidária agitada freneticamente, mas tem um fundo importante e uma delicadeza, uma coisa clássica na filmagem, muito bonito, muito calmo, muito elegante e tem essa entrada nos tapetes vermelhos do mundo, então eu acho que isso deslumbra muito o povo brasileiro, o povo brasileiro fica muito movido com a perspectiva de Oscar, então eu acho que isso tudo, a qualidade do filme e mais essa entrada do Waltinho no mercado internacional criaram essa linda febre e as pessoas voltaram ao cinema.
Não é só o público brasileiro que deixou de ir aos cinemas, o ser humano parou de ir aos cinemas, tem muita tela, é muito streaming, é muito computador, é muita televisão, é muita possibilidade e cada vez o mundo é mais rápido, poucas pessoas ainda querem sentar para ter uma experiência longa, com um grupo que seja ao mesmo tempo coletivo e reflexivo, que seja uma cerimônia, são novos tempos. É por isso que eu falei sobre voltar à novela, eu dedicava muita energia em filmes e via que o público não estava exatamente indo a todos eles, estavam esperando que estreassem no streaming, acho que é bom para todos nós que isso esteja acontecendo no “Ainda Estou Aqui”, me parece que isso vai se espraiar como uma onda gostosa das pessoas irem ao cinema, tomara, eu vi o filme e fiquei bem tocado também.
Como está a expectativa para o lançamento de “O Auto da Compadecida 2”?
MN: Eu acho que está sendo bastante esperado, eu acredito que pelo menos a princípio as pessoas vão lá prestigiar e celebrar com a gente os 25 anos do primeiro “Auto”, com uma nova tecnologia, um mundo onde a tecnologia vai nos dar um sertão fantástico e vai contar um pouco mais da história desses personagens de Ariano Suassuna para novas gerações, vai acalentar o coração de quem está com saudade de João Grito Chicó, eu acho que não importa o número de bilheteria que foi feito com “O Auto da Compadecida”, ele é o filme brasileiro mais visto no Brasil, assim como “O Auto da Compadecida” é a peça brasileira mais montada no Brasil desde os anos 1950, quando o Ariano escreveu, não existe peça no Brasil mais montada, eu estou nesse momento de frio na barriga para saber se eu consegui honrar o Grilo, eu sei que o Guel fez um trabalho lindo, acho até que o “Auto Compadecida 2” é mais bonito visualmente do que o primeiro, a história é muito boa, ele é engraçado também, ele é mais emocionante, porque os amigos se reencontram, João Grilo e Chicó se reencontram depois de 25 anos, acho que isso vai dar uma emoção no filme.
Ao mesmo tempo acho que ele vai ressemear entre nós aquela alegria de vir com heróis brasileiros, mas com cria Ariano Suassuna calcados na mais profunda cultura mundial, eu acho que todas as pessoas que construíram degraus para a gente construir uma brasilidade bonita sempre acreditaram que o Brasil é tão grande quanto qualquer lugar, parece que eu estava de volta em Taperoá, só que com ácido embaixo da língua, de como tudo é tão lindo, vocês vão ver, até eu às vezes pensava, que saudade de Cabaceiras onde a gente fez o filme, mas está tão bonito, o Guel estava tão certo, porque isso a gente já fez, está lá no primeiro filme, esse outro é todo mais Tim Burton, mas usando a tecnologia a nosso favor, criando um mundo de cores e de sensações muito, muito lindo, muito fantástico, quando eu vi a Tais Araújo de Nossa Senhora pela primeira vez, eu estava vestido de João Grilo, eu não resisti, eu falei em voz alta:
“Cara, talvez essa seja a coisa mais bonita que eu já vi na vida, tão bonito quanto o mais belo pôr do sol, tão bonito quanto os quadros mais legais que eu olhei em algum museu e disse, eu amo esse artista”, sabe? Era uma coisa que me tirava o fôlego, e como eu estava de João Grilo, me tirava o fôlego duplamente, porque era de novo Nossa Senhora vindo falar com o Grilo, e o Grilo é um homem brasileiro, sabe, o Grilo somos nós, todos, o João Grilo para mim é um dos momentos mais emocionantes de todos, da vida artística e da vida cotidiana,
O que o João Grilo representa na sua vida?
MN: Eu aprendi muito sendo João Grilo, ele aconteceu logo no início da minha vida no cinema, mas eu tinha feito pouca coisa quando o Guel me chamou para fazer “O Auto da Compadecida”, ele assistiu “Que É Isso, Companheiro”, viu “Central do Brasil”, e disse, tá aí o João Grilo, o cara que faz o destino de um jeito bonito.
Eu não era um ator que fazia muitas comédias, mas eu sempre fui palhaço, eu vinha da tragédia, eu tinha sido recebido como um ator no Brasil por causa do Jao, que era trágico, era uma tragédia, então foi muito espantoso ter percorrido alguns sertões no início da retomada do cinema brasileiro […] O João Grilo, eu acho que sem engano eu posso dizer, é o melhor personagem da dramaturgia brasileira para um ator, é a maior comédia do Brasil, é a mais montada, Ariano Suassuna é um dos maiores dramaturgos do mundo, acho que em termos de comédia é o melhor personagem brasileiro, talvez de todos os tempos o João Grilo seja o maior, porque ele representa muita coisa.
Ele é filho de uma tradição antiga, do teatro, personagens como o João Grilo estão nas obras de Molière, o comediante francês, os criados todos do Molière são João Grilos […] sempre tem um escravo muito esperto, ou um servo muito esperto, que com alegria, de uma maneira amoral, sobrevive aos podres poderes do mundo, sempre tem isso no imaginário popular, de todas as culturas, de todas as nações, no Brasil ele foi sintetizado pelo Ariano como João Grilo, João Grilo já existia na tradição oral nordestina e já estava inclusive impresso em Cordéis, da literatura popular nordestina, as proezas de João Grilo, você encontra isso, isso é anterior ao Auto.
O que o Ariano fez com uma maestria que só um gênio pode ter, foi reunir essas histórias sobre o João Grilo do Nordeste, com as histórias do Malazartes, que é um tipo de João Grilo dos caipiras, aqui do Sudeste, com a tradição dos servos, sapecas, sobreviventes, malucos, amorais, de mulher e das fábulas todas, e ele veio para mim relativamente cedo, mas eu já estava assim, peregrinando pelo sertão do Brasil, pelos sertões do Brasil, como ator, o Grilo era ao mesmo tempo um presente e uma responsabilidade, sabe, ele era um passe para eu tentar entender que ator que eu ia ser para o Brasil, sabe, eu vivo no Brasil de um jeito diferente, não tem a ver com grana, porque eu ganhei super mal para fazer o primeiro Auto, não era famoso, o projeto não era um projeto no qual a Rede Globo tivesse investido muito dinheiro, era tudo meio apertado assim, era um risco que o Guel estava correndo, era feito em película, talvez não desse certo.
Mas assim, do dia seguinte que o Auto estreou, tudo mudou, para mim, para a Selton, para todos nós, eu acho, pelo menos para mim, o que eu posso dizer é que eu me sinto protegido no Brasil, tendo sido o João Grilo, me botou no coração das pessoas e também pede que eu preste atenção com tudo que eu vou fazer, e eu tento prestar, assim, seja fiel ao público brasileiro, preste atenção no povo brasileiro, percorra os sertões geográficos e interiores de cada um de nós, então meus personagens, em geral, são pessoas de algum tipo de sertão, porque mesmo na cidade grande, você se afasta do centro mais cosmopolita de qualquer cidade brasileira, você já vai chegando no sertão, eu acho que a segunda, a segunda filmagem tá muito linda, a dramaturgia tá linda, os autores são bambambãs […].
Qual relação você faz entre “O Auto da Compadecida” e “Cidade de Deus?”
MN: “Cidade de Deus” semeou uma estética para o mundo inteiro, a gente está fazendo Cidade de Deus agora, eu estou voltando ao Cenoura do “Cidade de Deus”, e a gente faz agora em São Paulo a maior parte das cenas, e chama-se Novo Mundo, a favela onde a gente filma, é um sertão de São Paulo, é tão desprovido quanto o sertão do João Grilo, de água potável, é quente para caramba, não tem cultura, não tem comida.
Mas tem gente, um coração, um povo brasileiro, que merece respeito, e que tem que sobreviver a essa desigualdade, e eles estão lá, então assim, parece que o meu corpo de ator foi meio que premiado e destinado, através do João Grilo, a percorrer os sertões de nós, pelo meu tipo físico também é isso, pessoas simples, do bem, do mal, do Rio de Janeiro, da Bahia, do Nordeste, do Sul, onde for.
Em geral um corpo escolhido para representar quem está à margem, quem está mais à margem, todo mundo caiu na arapuca do capitalismo, você está rico no começo do mês, você está pobre no final do mês, você paga aluguel, escola das crianças, comida, e põe, e de novo, vem o mês que vem, é o Grilo, só que o Grilo é isso todo dia, acho que a maioria do povo brasileiro é isso todo dia, de novo.
E o convite para fazer parte da novela “Vale-Tudo” a partir de 2025?
MN: “Vale Tudo” é uma novela da reabertura, que pela primeira vez tocou nos nervos importantes da cultura nacional, principalmente na má índole e na desonestidade do povo brasileiro, dos poderosos e também dos mais pobres, era uma novela que falava sobre isso, o quanto você realmente é uma pessoa honesta, o quanto era possível ser honesto nesse país, e eu acho que isso é um prato cheio para a Manuela Dias, que vai adaptar, trabalhar, o texto do Gilberto Braga é bem bom mesmo, assim, eu andei revendo, agora eu estou revendo para estudar, eu vou fazer o Poliana, que era o personagem do Pedro Paulo Rangel, então, enquanto eu tenho tempo, às vezes eu revejo, você não consegue desgrudar os olhos pela inteligência da dramaturgia, tem temas profundos colocados e eu acho que dá para avançar mais ainda, essa ética mesmo do coletivo.
Como vê o atual cenário da cultura no Brasil?
MN: Eu acho que a gente retomou um respeito pelos artesãos, pelos artistas brasileiros, eu acho que apesar de todos os perigos, no fim das contas, a gente concluiu como país que era bom ficar de mãos dadas e atento à nossa cultura, muita dor aconteceu no caminho, muito desrespeito, algo foi perdido, a gente não sabe bem se tem retorno, cada um de nós fica dividido mesmo sobre se vai investir sua energia mais coletivamente, numa construção para todos ou se vai só se salvar. Mas me parece que o Brasil nesse momento decidiu, por pouco, mas decidiu, arriscar no mais coletivo, no parar para olhar quem nós somos, quantas cores nós temos, qual é a nossa cultura, qual o nosso folclore, quantas pessoas estão em estado de miséria, vamos cuidar deles, vamos assessorar. Eu acho o cinema brasileiro o mais legal do mundo e não só quando ele é um filme clássico e recebido nos tapetes vermelhos americanos, nosso cinema está sempre competindo de igual para igual com todo o cinema mundial nos grandes festivais de arte do mundo, nosso cinema é mais errado, mais colorido, nosso cinema tem agitado as bandeiras importantes de uma maneira frenética, nosso audiovisual abarcou as temáticas identitárias como ninguém. Eu acho que isso é uma coisa que nós fizemos, palmas para o audiovisual brasileiro, há uma mudança de atitude mesmo, até na TV, que é bonito que comece pela arte, mesmo quando ele fica abandonado às traças.
A boa notícia é que a pessoa que se virar e disser, quer saber, eu vou ver o cinema brasileiro que foi feito nesses anos todos, essa pessoa, ela vai pirar, porque tem de tudo e é um cinema que ao mesmo tempo tem bandeiras consequentes, ao mesmo tempo tem clássicos, tem grandes interpretações, tem putaria, tem cores, é vibrante, tem erros, tem experiências radicais para caramba, de mil pensamentos importantíssimos sobre o que é o ser humano, o que é um país jovem, colonizado da maneira como foi, com a violência que foi, sexualizado do ponto que foi, com as pessoas pretas tratadas como foi e como ainda são, com os índios tratados como foi e como ainda são… Os cafajestes é aqui, Oscarito e Grande Otelo vestidos de “Romeu e Julieta” é aqui, você está entendendo? Sonia Braga gozando, é uma dona de casa gozando, é aqui, “Iracema – Uma Transa Amazônica” é aqui, o “Auto” é com o presidente é aqui cara, eu acho nosso cinema muito mais legal, mesmo, de verdade, eu falo isso com a boca cheia, a minha bochecha chega para gorra de alegria, então eu espero que essa onda do “Ainda Estou Aqui” não seja só uma onda específica e relacionada a esse glamour do Oscar, mas que seja um lembrete de como nosso cinema é lindo e múltiplo.
E, claro, os filmes mais arriscados sempre vão demorar um pouco mais pra poderem ser digeridos, pra poderem ser vistos, mas eles ficam ali, eternizados, mexem na cabeça de quem viu e tão guardados pra quem quiser ver, e a gente tem feito conquistas, o artista brasileiro é amigo do povo brasileiro, só essa inversão aí que foi dolorosa num certo momento, até a Fernanda Montenegro falou isso, me lembro dela dizer isso na televisão, lá do alto dos seus 90 e tantos anos, dizendo: “Gente, vocês têm que encontrar o inimigo no lugar certo, o inimigo não somos nós”, a Fernanda Montenegro, que é praticamente a detentora da dramaturgia brasileira no corpo dela, fez filmes que viajaram o mundo para mostrar nossa cara, ela não é nossa inimiga, é só encontrar o inimigo no lugar certo, o próprio frisson em torno do “Auto da Compadecida 2”, que eu sinto, já me conta um pouco que a gente está fazendo as pazes com esse desejo de ser um país que gosta dos seus cantores, dos seus capoeiristas, dos seus atores, dos seus músicos, do seu cinema. A gente é um país legal.
O que você faria de diferente na sua vida se você pudesse?
MN: Tudo me levou pra ser o que eu sou, eu não acho que a gente é destinado e guiado por deuses, ou que tudo que te aconteça esteja predestinado, eu acho que tem as oportunidades concretas sociais, onde você nasce, a cultura que você tem acesso, tem um pouco de sorte no destino, mas tem também uma boa parte que é você que faz, é você que pega isso tudo e transa, junto. Eu não vejo muito, quando eu penso em mim desde a minha infância, como eu poderia fazer minha transa sem dar no ator que eu sou. Eu sou satisfeito com a minha destinação, não estou apaziguado nela ou confortável nela, ao contrário, eu tô sempre preocupado e achando que eu devo, que eu estou devendo a minha vocação e às pessoas.
Talvez eu quisesse, se eu pudesse mudar tudo, se eu não fosse tão agitado, se eu não tivesse tido as dores que eu tive na infância, se eu não tivesse nascido nesse país tão colorido, barulhento, sexual, louco, se eu não tivesse uma mãe poeta que se matou, um pai que tocava violão e me ensinava a bossa nova assim, desde que eu era criança, de colo, se isso tudo talvez tivesse sido diferente, eu talvez gostasse de ser um cara que estudasse o mundo animal a fundo, acho que eu ia gostar de ser alguém que está no mundo para olhar a biologia do mundo, como que a vida faz seu caminho. Eu sou louco por isso, eu tenho verdadeiros espasmos religiosos, se eu assisto um documentário bonito que pela primeira vez filmou como que um bebê de canguru sai da mãe e vai escalando até a bolsa, para entrar na bolsa, para achar o peito da canguru dentro da bolsa. Eu vejo Deus na caminhada desse canguru, eu vejo Deus quando os espermatozoides estão correndo, apostando corrida até o óvulo, eu vejo Deus quando uma flor é igual a uma abelha.
Outro dia eu vi uma borboleta, que ela de asa aberta, aliás, azul, brilhante, muito chamativa, e quando ela fecha as asas, ela é uma folha perfeita, até com o cabinho da folha, na ponta da asa, quer dizer que se ela pousar em qualquer lugar e fechar as asas, ela é uma folha, ela não vai ser caçada, não vai ser perturbada, não vai acontecer nada com ela. Isso eu acho de uma beleza, isso transcende o meu entendimento, me faz sentir um merda que não entende nada da vida, ao mesmo tempo me dá o sentimento de, cara, eu estou numa viagem muito interessante, e eu sou uma das tentativas da vida de estar aqui. Assim como a borboleta tenta desse jeito, eu provavelmente sou uma tentativa dessa coisa, dessa dança que alguns chamam de Deus, que alguns chamam de amor, que é o que move a permanência da vida aqui na Terra, essa beleza de transformação constante em busca de vida, vida, vida, é preciso que se morra para dar lugar à inovação, àquilo que vai tentar melhor, muitos fracassos para que alguma coisa aprenda, é preciso substituir as gerações para que isso aconteça.
Como lida com a morte?
MN: A biologia me acalma com relação à morte. Que bom que moro também, vou dar espaço, e alguma coisa que eu tiver aprendido vai estar cravada. Eu, como não tenho filhos, não vai estar cravado geneticamente, mas vai estar cravado nos trabalhos que eu fiz e tal, vai estar um pouco uma participação.
Isso me acalma com relação à morte, não me dá vontade de a morte ser um lugar onde eu reúno minha consciência e permaneço. Não preciso, não quero reencarnar nessa forma, que seja tudo reaproveitado para as novas viagens da vida que ela tiver que fazer. Com certo alívio, imaginar que se a gente acabar com tudo, como estão dizendo que a gente está fazendo, ser humano, que a gente vai poluir tudo, vai esquentar o mundo, vai destruir tudo, se for verdade que isso vai acontecer, que isso está acontecendo, e parece que está, que talvez não tenha mais volta, se todos nós morrermos, mas uma bactéria sobrar, está garantida a vida.
Ela vai fazer o caminho de novo, por outros riachos aí, por outros afluentes, talvez evitando o ser humano, talvez dizendo, mas ali a gente não pode mais ir, vocês lembram que eles destroem tudo, eles fazem revólver [risos], eles fazem umas coisas meio loucas, aquela gente lá, mas o que importa é que a vida ganhou, cara. Então eu acho que se eu pudesse mudar tudo e ser um cara menos aflito, com menos vontade de expressar uma angústia, porque é isso né, eu quero expressar uma angústia, e eu não me contento em expressar uma angústia escrevendo, ou compondo uma canção, não, eu tenho que viver isso, é uma expressão com todo o meu corpo e toda a minha alma, é bem louco o ator.